Longe vai o tempo em que se celebrava o resgate de pessoas no mar e se chorava pelas vidas perdidas. Agora, 5 anos depois do naufrágio que matou 368 pessoas em Lampedusa e que gerou indignação geral, o mundo olha indiferente para as mortes que a europa está a provocar no alto mar.
Naqueles tempos não existiam tantas missões de salvamento, por isso o choque de Lampedusa levou o Governo italiano a lançar a Operação Mare Nostrum. Durante o ano de 2013, 150 mil pessoas foram resgatadas pela marinha italiana, que tinha aeronaves e navios de guerra à sua disposição. Mas a operação era demasiado custosa para um só país, e os restantes membros da União Europeia não quiseram fornecer o apoio financeiro para a manter. Assim esta grande e bem sucedida operação de salvamento foi substituída em 2014 por outra, cujo orçamento era 3 vezes menor. Reduzida a área operacional, aumentou dramaticamente o número de mortos.
Como resposta a esta negligência total por parte dos países da união europeia, várias Organizações Não Governamentais (ONG), reuniram esforços e recursos, compraram embarcações e fizeram-se ao mar com uma missão em mente: salvar vidas.
Desde 2015 estas pequenas organizações, que funcionam à base de doações privadas e de serviço voluntário, conseguiram resgatar cerca de 110 mil pessoas. A título de exemplo, a organização Jugend Rettet criada por jovens de Berlim conseguiram comprar um navio de pesca, o Luventa, e adaptá-lo para missões de salvamento; a Sea Watch outra ONG alemã possui 3 embarcações e um pequeno avião para realizar vigilância aérea; a Proative Open Arms, uma ONG espanhola que começou por resgatar refugiados na Grécia e que agora tem embarcações no Mediterrâneo Central para além de realizar campanhas de sensibilização para os perigos das migrações nos países de origem e finalmente o Aquarius, da SOS MEDITERRANEE que em parceria com a Médicos sem Fronteiras, salvou perto de 30 mil refugiados e imigrantes desde que iniciou as operações no início de 2016.
Infelizmente a história não acaba aqui, em 2017 o governo italiano estabeleceu um acordo polémico com a Guarda Costeira Líbia para que estes intercedam todas as embarcações antes de estas chegarem às águas internacionais. No entanto, a Líbia não é um país seguro para alguém regressar nem a guarda costeira é competente para lidar de forma humana com os refugiados. Todos os dias chegam relatos cada vez mais negros do que se passa nos campos de detenção líbios, onde pessoas são obrigadas a telefonar aos familiares a exigir dinheiro para pagar a sua liberdade, ao mesmo tempo que são agredidas e violadas, como forma de chantagem. Homens, mulheres e centenas de crianças encontram-se nestas condições. Os que não conseguem arranjar dinheiro, sofrem torturas intermináveis e são vendidos como escravos para fazer todo o tipo de trabalhos forçados e eventualmente lá morrerem. Uma reportagem da CNN em 2017 filmou um destes leilões de tráfico humano, mostrando uma realidade que a União Europeia, embora já tivesse conhecimento dela, nada fez para a combater, antes pelo contrário são os Estados-Membros que financiam a manutenção destes campos de detenção. É preciso entender que pagar a criminosos para que mantenham os migrantes em condições desumanas é a política de eleição da União Europeia para lidar com o influxo migratório dos refugiados. O objetivo é muito simples, colocar as maiores humilhações nos ombros dos migrantes e dos refugiados, de forma a impedir que eles tentem cá chegar. Criando assim à nossa volta um escudo da vergonha, ou seja, enviamos milhões de euros para países periféricos, como a Turquia, o Egipto, a Líbia e Marrocos, para aumentarem a vigilância e a repressão junto das fronteiras europeias, e não nos importamos se isso causa abusos e violações de direitos humanos.
Curiosamente esta política também inclui medidas dentro da própria Europa. Por exemplo como é que se explicam as condições miseráveis a que os refugiados, sírios, afegãos, iraquianos estão, ainda hoje, sujeitos nos campos de refugiados na Grécia? Como é que é possível na Europa, o continente mais rico e desenvolvido, se permita a existência de um campo de refugiados que leva crianças com 10 anos de idade a tentarem o suicídio? Como é que um campo de refugiados no Uganda tem melhores condições de vida que o de Mória na ilha de Lesbos? Subitamente a Europa não tem dinheiro para fornecer alguma dignidade a estes refugiados em específico? Acabou-se o dinheiro? Não, claro que não. A questão fundamental é em o que é que nos tornámos? Nós decidimos colocar pessoas, já fragilizadas pela guerra, pela perseguição e pela miséria, e que pediram a nossa ajuda, em condições ainda mais traumatizantes, como se elas tivessem cometido algum crime. Isto demonstra uma tremenda falta de solidariedade e empatia, representando apenas o ódio e o desprezo que temos pelos outros.
Mas pior ainda que não ajudar as pessoas é impedir que outros o façam. E isso leva-nos de volta ao mar Mediterrâneo, onde está em curso uma nova campanha de dissuasão da migração, que será ainda mais violenta que as anteriores. Tudo começou com notícias falsas e teorias de conspiração que diziam que a ajuda humanitária favorecia a migração ilegal. Isto é completamente falso e perigoso, falso porque as pessoas continuam a vir mesmo sem alguém lá para as salvar e, perigoso porque coloca a possibilidade de deixar morrer as pessoas no mar. Mas, alguns políticos europeus não vão de mão dada com os factos e muito menos com os direitos humanos, por isso decidiram usar os migrantes e aqueles que os salvam como bodes expiatórios dos seus problemas só para ganharem votos facilmente. Iniciaram uma purga às Organizações Humanitárias que trabalham no Mediterrâneo, em Itália com um processo judicial contra o Iuventa e os seus tripulantes incluindo um voluntário português e, na Grécia com a prisão de voluntários da Emergency Response Centre Internacional. Aqui e ali surgiram processos legais contra diferentes ONGs forçando-as a parar operações. O próprio Aquarius viu a sua bandeira ser retirada por Gibraltar e pelo Panamá, alegadamente por pressões italianas, impossibilitando futura navegação marítima. Como refere e bem Nelke Manders, diretor geral da MSF que operava o navio Aquarius - “Não só a Europa falhou em providenciar recursos de busca e salvamento, como também sabotou ativamente a tentativas de outros de salvar vidas.” Chegou ao ponto de os abandonar depois de serem salvos, como o Sea Watch que está à espera há 17 dias no mar alto que um país europeu se decida a acolher as 49 pessoas que tem a bordo. São atitudes cobardes e vergonhosas como estas, defendidas abertamente pela extrema-direita de Mateo Salvini e Victor Orban mas silenciosamente aceites pelos restantes estados-membros da União Europeia, que estão a matar os migrantes no Mediterrâneo.
As Nações Unidas referem que a taxa de mortalidade no Mediterrâneo é agora tão alta como no pico da crise em 2015. Tendo chegado a morrer 2242 pessoas que tentavam chegar à Europa por mar em 2018.
As soluções são complicadas, mas devíamos exigir o regresso de grandes operações de resgate como a Mare Nostrum, ou no mínimo deixar as agências humanitárias fazerem o seu trabalho, que é de louvar. Fundamental seria mesmo promover a existência de rotas seguras, pontes aéreas, visas humanitários, para que as pessoas não precisassem de correr riscos desnecessários para procurar asilo. Devíamos também investir nos países de origem promovendo a segurança, a estabilidade, a paz, criando assim oportunidades para os seus habitantes, em vez de lhes vender armamento, construir muros cada vez mais altos e pagar a criminosos para vigiarem violentamente as nossas fronteiras.
Podíamos fazer isso tudo mas para o alcançar precisamos de votar nas eleições Europeias e Legislativas deste ano, e exigir dos governantes eleitos a defesa incondicional dos Direitos Humanos. Agora uma coisa é certa, se começarmos a achar que a morte em massa de minorias indesejadas é algo aceitável, então podemos estar a caminhar para um futuro semelhante a um passado que foi extremamente violento para a Europa e para o mundo. Mas acredito, e espero, que agora que somos livres não voltaremos atrás.
Ricardo Sá, 4º Ano
Ilustração por Ricardo Sá, 4º ano
Referências Bibliográfica
https://www.msf.org/aquarius-forced-end-operations-europe-condemns-people-drown
http://missingmigrants.iom.int/region/mediterranean
https://pulitzercenter.org/reporting/libya-nearly-there-never-further-away
https://www.euronews.com/2019/01/04/we-are-not-fish-migrants-stranded-at-sea-grow-frustrated