Vejo-a sentada na mesa do canto do café e sei que me vou apaixonar. Está com um caderno à sua frente, a escrevinhar alguma coisa que anseio ler e, de vez em quando, levanta a cabeça e encosta-se à cadeira para pensar. Na realidade, não parece pensar em absolutamente nada, parece apenas pausar um vazio para se ocupar de outro.
Não quero que repare que estou aqui há mais tempo do que devia, pelo que saio e volto a entrar, dirigindo-lhe um aceno casual, ao qual imediatamente me responde com um sorriso e um aceno da mão que segura gentilmente o cigarro aceso. Desta vez não me convida para sentar, pelo que pego no copo e saio.
Ainda me lembro quando me prometi que não ia ceder aos seus encantos… quando ma apresentaram, só conseguia concentrar-me nos seus olhos e no quanto desejava perder-me neles, sabendo que seria um erro. Mas, em vez de ouvir a voz da razão, lá me deixei cair no poço interminável que é a paixão.
Não a percebo. Talvez por isso ela me tenha na palma da sua mão.
Quando chego a casa, pergunta-me porque não me juntei a ela, mas há uma semana fi-lo sem convite e limitou-se a virar a cara e a mandar-me embora…
Mais um dia, combinamos encontrar-nos no sítio habitual. Chego à margem do rio uns minutos antes, porque sempre gosto de a ver chegar. Cabelo ao vento e a olhar para o chão, apaga o cigarro mas prepara logo o seguinte. Detesto que o faça. Olho para as costas dela e vejo uma mochila, pelo que sei que trouxe vinho a mais, como sempre, mesmo que lhe tenha pedido que pare de o fazer.
Senta-se ao meu lado, sem uma palavra, e abre a primeira garrafa. Quando ma oferece, já vai a meio. Reparo nas nódoas negras nas pernas dela e tento não dar a entender que me preocupo, porque sei que ela não gosta. Quer que a deixe ser um furacão em paz.
Tem os olhos vermelhos, de novo. Esteve a chorar. Mas sorri quando vê o fumo branco sair da sua boca e segue-o com o olhar. Tão simples.
Pergunto-lhe o que estamos ali a fazer, mas ela manda-me calar num sussurro e deita-se a olhar o céu.
Toco-lhe no cabelo. Não diz nada, pelo que continuo. A minha mão desliza pela pele dela e demora-se em cada recanto. Repouso-a no seu pescoço. Continua sem dizer nada, pelo que continuo. Sinto a seda do seu casaco e afasto-o do caminho, deixando os meus dedos envolver-lhe a cintura. Aproximo-me e obrigo-a a encarar-me. Reparo nas flores brancas que saem da mochila, mas não ligo. Deixo a minha mão sentir a pele dela e sinto a sua respiração mais forte, impaciente.
Sem aviso, puxa-me para ela e beija-me como se nunca mais me fosse ver. Sinto o calor dela junto a mim e prendo-me a este momento. Sinto o sabor a vinho e incomoda-me, mas não digo nada, bem como finjo não cheirar o tabaco. Nenhum destes vícios me pertence, porque o meu único vício é ela.
Afasta-me repentinamente e senta-se de costas viradas para mim. Já sabia. Murmura qualquer coisa e levanta-se. Eu limito-me a sentar-me, calmamente, e a reparar que a garrafa já está vazia. Reparo que começou a chorar e sei que quer que me vá embora, mas não vou. Abraço-a com força, combatendo a sua vontade de me bater até ela se agarrar a mim e se esconder no meu casaco. Parou de chorar claro, nunca choraria à minha frente. Não lhe pergunto se está bem, porque sei que me vai ignorar, por isso limito-me a ficar ali até ela me virar costas e ir embora.
Vejo-a a afastar-se e, por um momento, desejo decifrar o enigma que ela é, mas depois recordo-me que não me importo de ser usado por ela e que talvez um dia ela faça sentido. Bem sei que amanhã a vou ver sentada no café e me juntarei a ela, quer ela me convide ou não, e sei que ela estará a fumar para morrer.
Mas o que eu não sei é que foi a última vez que a vi. O que eu não sei é que devia ter prestado atenção às flores.
Por tudo isto, limito-me a murmurar:
“Até amanhã, Alaska.”
Raquel Moreira, 2º ano
Ilustração por Susana Xu, 3º Ano