BULA MEDICINAL | A necessidade do cinema

A necessidade do cinema

“Talvez a grande função da arte seja dignificar o Homem e talvez seja o triunfo sobre o sofrimento, a dor, a morte.”

- António Lobo Antunes, em entrevista a A. L. Coelho

I.

     Quando leio um livro, não quero senão que ele me cause inquietação. Que me perturbe, que me deixe a pensar. No fundo, quero que o livro me faça questionar aquilo que tenho por garantido. O mesmo se aplica às outras artes. Como posso permanecer impassível depois de ter lido o Ensaio sobre a Cegueira? Ou de ter admirado a ginástica angustiante das pinturas de Dalí?

     O cinema chega, hoje em dia, muito mais facilmente ao grande público do que as outras formas de arte – e, contudo, parece que o cinema (e cada vez mais as séries televisivas) têm uma espécie de função “anestesiante”, isto é, de permitir às pessoas imergir-se neles e, momentaneamente, esquecer tudo o resto (trabalho, família, sociedade...).Vai-se ao cinema “desligar-se” do mundo por algumas horas e depois… Acabou, volta-se à realidade (independentemente do que este fluido termo queira significar). O cinema e a televisão ganharam, assim, uma dimensão “alienante”, no sentido em que alienam, afastam os seres humanos das realidades mais próximas. 

     Segundo Clement Greenberg, no seu pioneiro ensaio Vanguarda e Kitsch (1939), no final do século XIX, devido à industrialização e consequente migração maciça para os centros urbanos, apareceu uma classe intermédia, citadina, culturalmente algures entre o campesinato e as elites: isto levou ao surgimento de um tipo de arte e entretenimento para as massas, denominado kitsch, que é “arte” produzida para as massas, até aplicando as mesmas técnicas que permitiram a industrialização. Pintura, mobília, estatuária, música, teatro e, depois, o cinema, produzidos en masse com o objetivo de entretenimento rápido e lucro, em detrimento das formas estéticas artesanais. O kitsch é a falsificação da arte, porque é um produto do consumismo (1). Ainda segundo Greenberg, os artistas tradicionais, no ensejo de se afastarem do kitsch, que ganhava terreno, reagiram com a criação das vanguardas do século XX. Neste sentido, o cinema atual ainda é vítima do kitsch, representado pelas grandes produtoras, que enchem as salas de projeção com películas ocas, vazias de verdadeiro conteúdo, mas, obviamente, grandes sucessos de bilheteira.

      Ora, a alienação (Entfremdung é o termo alemão utilizado em teoria social) dos espectadores é extremamente útil para as formas de poder – um povo constituído por indivíduos alienados através de entretenimento vazio de conteúdo ético e intelectual é um povo fácil de controlar: a fórmula imperial de “pão e circo” é o epítome disto.

     Porém, foi sempre assim?... Com o teatro, antigamente, já era deste modo? Segundo o filósofo italiano Giorgio Colli, os gregos antigos iam ao teatro exatamente para encontrar a realidade: “Estamos rodeados pelo espetáculo, tudo hoje é espetáculo, e não apenas o teatro, o cinema, a televisão. Hoje também os homens de ação olham mais do que agem. Por essa razão ficamos aterrorizados quando alguém consegue revelar o que foi a tragédia grega. De súbito percebemos que aquilo não era unicamente um ver, que aquele espetáculo era a essência do mundo, contagiante, sobrepondo-se aos objetos que acreditávamos serem reais (2).”

     Ligado ao culto do deus Diónisos, o teatro ateniense estava impregnado de uma forte componente ritual e religiosa. Dois ou três atores interpretavam os grandes mitos helénicos, cujos protagonistas, varões e mulheres de carácter excepcional, enfrentavam as consequências do seu orgulho desmedido (hubris) e a vontade inexorável do destino (ananke), acompanhados de um coro que cantava e declamava desde a orquestra (3).

     “O distanciar-se da vida é de tal modo inicial que se confunde com a própria vida. Por conseguinte a sensação moderna «isto é apenas um espetáculo» é o inverso da emoção da tragédia grega (…) que fazia dizer «esta é apenas a realidade quotidiana.» (…) O espectador da tragédia grega vinha e “conhecia” qualquer coisa mais acerca da natureza da vida, (…) (2).”

     Todavia, a tragédia como os antigos e modernos conheceram praticamente morreu. Parte dela transitou para outra forma dramática, o filme. O cinema é per se poético, como foi o teatro, no sentido da palavra grega poiesis, “criação” – a tessitura de um texto e de uma ação contidos em si, habilmente fabricados com a perícia de um artesão. 

     O objetivo do presente ensaio é apresentar e comentar dois filmes (revelando minimamente o seu enredo, apenas um aperitivo), pouco conhecidos do grande público, mas que atingem aquele almejado objetivo de dizer “isto é a vida, é assim; vinde saciar-vos desta verdade nua.”

II.

     O Sacrifício (1986) foi o último filme do realizador russo Andrei Tarkovsky e trata-se de uma produção franco-sueca. O argumento é enganadoramente simples: numa casa isolada no interior rural da Suécia, família e amigos reúnem-se para celebrar o 56º aniversário de Alexander, crítico literário e antigo ator. A meio da festa ouvem-se os ruídos ensurdecedores de aviões militares e mísseis, de seguida as notícias anunciam o começo de uma nova guerra mundial e o ataque em massa com armas nucleares. As personagens entram em desespero, os seus demónios interiores libertam-se, infunde-se o pânico.

     «Esperei por isto toda a vida», murmura para si mesmo o protagonista. E no meio da angústia e da confusão, Alexander reza e tenta negociar com Deus: em troca da salvação da Humanidade por intervenção divina, Alexander abdicaria de tudo aquilo que lhe era mais querido: a sua família, a sua casa, e até se compromete a um voto de silêncio eterno.

     Tendo em conta a época em que o filme foi produzido, a ideia de um apocalipse nuclear estava bem presente na mente das pessoas. Mas o foco da narrativa vai para a psicologia individual das personagens e o modo como lidam com a situação. Os temas de sofrimento, redenção e a procura do transcendente, bem como a fina análise psicológica fazem que esta obra lembre um pouco o estilo narrativo do romancista russo Tolstói.

     O realizador emprega longas sequências de grandes planos, em que, por vezes, parece que os atores são secundários às paisagens. O passo lento do filme, combinado com o minimalismo dos cenários dá quase a sensação de uma sequência onírica. A banda sonora também em si minimalista, restringindo-se a duas peças musicais apenas: uma melodia encantatória, ininteligível, e a Paixão segundo S. Mateus, de Bach. Esta última, para além da sua beleza inerente e dramática, encontra-se relacionada tematicamente com o argumento: o oratório de Bach relata o magno sacrifício de Cristo para a salvação da Humanidade.

     Estão presentes temas filosóficos variados, como a ideia do “eterno retorno.” O enredo prima pela ambiguidade, podemos interpretar a narrativa de diferentes modos. Aos poucos vamos descobrindo que a vida familiar de Alexander não é assim tão idílica, que a sua esposa está arrependida de se ter casado com ele e que mantém uma relação com o médico da família. Da mesma maneira, com a afirmação do protagonista, «Esperei por isto toda a vida», podemos questionar pelo que é que ele esperou que acontecesse: a guerra nuclear? O fim da absurda fachada social da sua vida? Outra coisa, então?

     Encontra-se uma forte crítica ao progresso tecnológico – não nos tornou mais felizes, pelo contrário colocou-nos mais perto da alienação e da desumanização. Foi o progresso tecnológico e industrial exacerbado que permitiu as duas guerras mundiais e as alterações climáticas; e, agora, as realidades virtuais afastam-nos cada vez mais profundamente.

     Tudo isto é posto em cena por atuações soberbas e fotografia impecável e não é por acaso – a equipa que produziu esta fita era a que colaborava com Ingmar Bergman. Vejo este filme como um testamento ético e estético deixado por Tarkovsky à Humanidade.

III.

     Tangerinas (2015), de Zaza Urushadze, produção estónia-georgiana, foi nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro no ano em que saiu. É estética e narrativamente mais simples que o filme anterior. Talvez exatamente pela sua simplicidade seja ainda mais cativante.

     Passa-se em 1992, no Cáucaso, quando se iniciaram movimentos independentistas que culminaram no fim da União Soviética, resultando em tensão étnica entre georgianos e abcásios e consequente guerra civil. Dois camponeses decidem permanecer na Geórgia, nas suas remotas e rurais propriedades, durante o tempo suficiente para terminar a colheita de tangerinas. Um deles, Ivo, após um combate frente à sua casa, acaba por resgatar os dois sobreviventes, um soldado georgiano e um mercenário checheno. Feridos, Ivo cuida deles e impõe a estes dois inimigos, Nika e Ahmed, uma trégua enquanto estiverem sob o seu teto, embora jurem que irão matar-se um ao outro mal estejam recuperados. 

     A câmara desliza suavemente pelas paisagens montanhosas da Geórgia, pelo pomar e pela rústica casa de Ivo, com subtis contrastes de luz e sombra. As personagens são cuidadosamente estudadas, não são meras figuras de cartão que se movem ao som de vagas ideias, mas sim pessoas iguais a nós, com vontades, medos, contradições, apanhadas a meio de algo que não conseguem controlar.

     Inteligente, poderoso e profundamente humano nas suas atuações, também com uma preocupação minimalista e uma maravilhosa banda sonora, Tangerinas é já um clássico. 

IV.

     Talvez aquilo que nos verdadeiramente distingue dos animais seja o facto de o Homem contar histórias. E de ter o profundo desejo de ouvir contar histórias, para se compreender a si mesmo e ao mundo. 

     A arte é aquilo que nos humaniza, que nos relembra quem somos; é um grande “conhece-te a ti mesmo.” De certa maneira aproxima as pessoas independentemente do país ou da época. As narrativas que os bons filmes nos contam ajudam-nos a encontrar a nossa humanidade, são uma afirmação da nossa humanidade comum e, voltando à epígrafe deste texto, talvez, por isso mesmo, sejam uma vitória sobre o sofrimento, o olvido e a morte.

     Neste sentido, o cinema é essencial e necessário

Lisboa, 15-01-20

Texto: João Almeida - 1º ano

Bibliografia:

  1. Greenberg C. Vanguarda e Kitsch – Ensaios Escolhidos. Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa; 2019.

  2. Colli G. Escritos sobre Nietzsche. Lisboa: Relógio d’Água; 2000.

  3. Aristóteles. Poética (tradução do grego com introdução e índices por Eudoro de Sousa). 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores; 1964.