I
Tela preta. Luzes acesas. O que será ali projetado? Ninguém sabe, pois nas cadeiras pretas e almofadadas da sala da Sétima Arte não está vivalma. E é uma pena realmente nenhum par de olhos conseguir receber os raios luminosos que se refletem vindos das luzes de presença nas cadeiras vermelhas da melhor pele, com apoios em mogno encerado e com números de identificação dos lugares, em caligrafia cuidada. Ladeando de ambos os lados das filas estes luxuosos cadeirões, estão escadarias com degraus de madeira de rebordos dourados. Ao fundo da sala, na parede mais posterior, no seu exato centro geométrico, um foco; peritos diriam que seria, naturalmente, o ponto de contacto com a famigerada sala do projetor.
Esta sala está igualmente, vazia de gente, mas muito menos luxuosa: simples quatro paredes, um teto e um chão, um projetor inserido na parede anterior, antiquado, duas bobines, condensador, lâmpada interna e respetivo obturador, tudo terminando numa simples lente, onde se afigurarão obras, a partir da sua transfiguração da fita para luz que embate instantaneamente na tela. Tem também uma mesa onde assenta o projetor e uma porta por onde entraria um funcionário incumbido da tarefa de ativar o aparelho que faria o serão de muita gente.
Voltando ao ponto de luz, dir-se-ia que embora aceso, nada estaria a projetar na tela, ainda preta. Seria luz vinda da sala do projetor, com a porta deixada aberta pelo projetista? A porta estava trancada, a sala vazia de gente e o projetor desligado. Apenas uma lâmpada no teto da singela sala estava acesa, acompanhando as luzes de presença da grande sala da tela. Tudo estava neste conjunto de salas contíguas num estado de vazia Latência. Algo estaria para acontecer, ninguém sabia o quê. Talvez, o soubesse se a Existência fosse permitida em todo este cenário.
II
Passos secos num chão de madeira que seria milhares de vezes pisado por criaturas bípedes, estranhos seres que certamente se sentariam naqueles cadeirões de pele, depois de pagar por um papelinho enunciando o que iriam testemunhar quando a tela resolvesse ficar com outra cor que não negra.
Passos aproximam-se da dita sala, ecoando pelo simples corredor que levava à tela, a estrela principal. Passos produzidos por sapatos Oxford pretos calçados por uma figura que se aproximava, atrás do eco dos seus passos. Mais passos dados, mais se via o seu perfil: um chapéu fedora castanho, ornamentando uma cabeça indefinida na sua totalidade, exceto nos lábios de um vermelho negro uniforme, dir-se-ia que o seu único propósito era ser o poiso de uma cigarrilha única, inapagável até ao Fim; óculos tartaruga assentes num nariz e orelhas que se confundiam com o ar lúgubre do corredor, apenas ornamentado por estandartes para cartazes vazios. Tinha ainda num bolso, ladeando a lapela pontiaguda do casaco, um lenço branco clássico, escondendo uma cigarreira vazia; um fato, de corte inglês impecável com cor azul escura; uma camisa de colarinho engomado, que obrigava ao uso de botões de punho, estes de prata polida; uma gravata fina e preta, tão negra quanto a tela da sala, o destino daquele ser que em si encerrava toda a Existência. Pelo menos até que o Fim chegasse...
III
O Espetro não fantasmagórico, elegantemente vestido, avança acompanhado do seu eco, a passos vagarosos, mas determinados em direção à tela ainda negra, ainda vazia. Não está impaciente, mas sente a latência no ar daquela sala que está prestes a visitar. Não tinha bilhete, não precisava de tal coisa, Tudo lhe pertencia; nos braços, apenas uma gabardine trench-coat bege obtida numa qualquer rua cosmopolita, com lojas dos melhores produtos para cavalheiros. Uma rua ainda por batizar, por quem viria a seguir.
O Espetro estava já ao pé da porta da sala do projetor. Com a cigarrilha na boca e inalando o seu fumo, que desaparece nos seus lábios para nunca mais de lá sair, estala dois dedos numa mão, que parecia não existir antes de ele querer estalá-los. Simultaneamente ao som produzido pelo embate digital, a porta destranca-se, mantendo-se fechada e a lâmpada no teto apaga-se. Ele não gostava de desperdiçar o seu dom, inesgotável até ver, em coisas desnecessárias. Era económico na demonstração do seu poder, que ditava o que era e o que não era. Neste momento, a sala e a tela existiam porque ele assim deliberou. Entra na sala da tela, o corredor esfuma-se, desta feita sem estalar de dedos; já tinha cumprido o seu propósito, tal como quase tudo criado pelo ser magnânimo, que ali tinha chegado, finalmente.
A latência estava prestes a atingir o seu limite máximo, sentia-se no ar da sala luxuosa. Agora a sala não estava mais vazia. Os seus lábios movimentam-se coordenadamente, deste movimento quase nasce um sorriso, que serve apenas para albergar uma vez mais a perene cigarrilha, um cilindro de tabaco enrolado sempre aceso, castanho e fino, elegante e simples, como muito do que criara e tudo o que possuía. Deste objeto, nenhum malefício o afetava, visto que sofrer era algo que lhe estava interdito; tal como o sentimento e a emoção, estas eram coisas por ele criadas, mas não utilizadas. Porém, se esta se apagasse, ele apagar-se-ia também, na derradeira resolução daquela latência que ele já não podia ignorar. E toda esta urgência estava concentrada naquela tela, negra como tudo e como nada.
Entrava no vestíbulo da grande sala, um retângulo todo ele de veludo vermelho vivo iluminado por quatro apliques de forte intensidade dispostos dois a dois nas paredes opostas da divisão; apagar-se-iam quando a tela mudasse de estado.
Saiu do vestíbulo e viu-se cercado pela luz de presença e pela negritude da tela. Leva a cigarrilha à boca uma outra vez, atentos contariam pela terceira, atentos estes que não existiam. Pensa que não mais andará; limitar-se-á a assistir à projeção iminente.
IV
A ditadura do Vazio de Existência estava prestes a chegar ao fim, era essa a latência premente detetada pelo Espetro.
A cigarrilha estava outra vez nos seus lábios. Não lhe restava muito mais para fazer: vestira aquele fato que nunca se sujava, transitara por todo o lado; era omnipresente (Tempo e Espaço eram algo que se curvava ao seu estalar de dedos). Omnipotente como era, limitara-se a existir, a criar espaços onde os seus passos pudessem ecoar como a rua de lojas onde adquirira o seu figurino, como o corredor por onde passara, a sala do projetor e a sala que albergava a belíssima tela negra como o Cosmos, de que era o Dono.
Ele tinha criado tudo, uma totalidade de ideias, ambientes, substâncias, misturas, que iria albergar todos os que viessem a existir; deixara plantadas sementes de algo que viria a ser único, diferente dele próprio, algo vivo, finito, que sofria, que penava, que respirava, que iria evoluir, que iria nascer, sentir, destruir, remediar, morrer e nascer outra vez. Decidiu deixar um espaço limitado de criação nas mentes daqueles que viriam, um pequeno quadro branco por preencher em conjunto com maior parte dos conceitos pré-definidos plantados por Ele. Era um fardo pesado, o de criar; não obstante, decidiu limita-lo a uma espécie de seres que dominariam as suas criações. Inseriu nas ideias que teriam algo que iria contaminar superfícies como a sua tela negra, um espelho do futuro de tudo o que criara: criatividade aliada à imaginação, uma parte da sua própria substância, limitada pelo chapéu, fato, óculos.
Estala outra vez os dedos: aparece de imediato sentado na cadeira mais central de toda a sala; o Espaço não lhe impunha fronteiras, era-lhe obediente. Ao mesmo tempo que se teletransporta, o projetor na sala atrás ativa-se sem qualquer intervenção manual. Inicia-se um barulho cadente e repetitivo das bobinas a rodar e a fazer projetar uma película que continha as imagens pelas quais o Espetro esperou apaticamente durante todo o seu labor interminável. As luzes apagam-se, a derradeira sessão iria começar; a latência, cada vez mais ardente, terminaria finalmente...
Leva a cigarrilha à boca e inala o seu doce e agreste fumo mais uma vez; estala os dedos uma derradeira vez e a tela acende-se: passa imagens de toda a Criação, da formação de universos e seus elementos, de Energia, galáxias, planetas organizados em sistemas. Viu que apareceria Vida nesses planetas, dar-se-ia de seguida a evolução da mesma. Assistiu, assim, ao nascimento da espécie de seres sua predileta, a quem cedera a sua substância, parte do seu poder de Criação. Seria uma espécie todo-poderosa, que atingiria um tal estatuto que moldaria, mal e bem, todo o planeta que Ele preparara para os ditos seres, que fabricariam, depois de milhares de anos, aparelhos como o projetor da sua Sala, telas parecidas com a sua Tela, Salas como a sua, Roupas como as suas, cigarrilhas semelhantes à sua e projeções como as que se lhe afiguravam aos óculos que usava. Quase que os sentia rindo e chorando com as películas a que assistiriam. Iriam fazer coisas para além daquele Cinema, fariam descobertas científicas, explorariam todas as Suas criações com a resiliência e a inteligência só detida pelos chegam ao Pináculo da Evolução. Sentiriam, amariam, odiariam, matariam, sofreriam tal como ele nunca o conseguiria fazer...
Vê todas as imagens até ao fim, uma conclusão caduca e indefinida que seria moldada pela forma como os seus filhos usariam o poder que Ele lhes dera. Impassível e sempre apático na sua cadeira, vê todos os outcomes possíveis: desde a glória imortal à extinção dolorosa. Leva a cigarrilha aos lábios uma última vez, pensando que acabara o seu trabalho e passaria toda a responsabilidade para essa espécie que viria. Quando acaba de inalar o fumo, a cigarrilha apaga-se. Com ela, apaga-se também a Sala, o projetor e tudo em seu redor; restam apenas a sua tela e Ele próprio. As suas roupas desaparecem e os seus lábios. Todo ele se torna fumo, que é consumido vorazmente pela Tela que passa a ser o ponto de partida de tudo o que Ele arquitetara, a singularidade a partir da qual despoletaria o seu Projeto. Num processo vertiginoso, violento e permanente, a Tela assume tudo e a latência atinge um expoente máximo, dando-se uma contração perigosa e potente, uma compressão de tudo e de nada, num fundo negro próprio do que está prestes a existir.
Num instante, tudo se modifica numa explosão que continha em si um Fim e o Início, uma singularidade a que os humanos chamaram passados milhares de milhões de anos o Big Bang. Ainda desconhecem a entidade que despoletou tudo isso e, inquietos por esse mistério e desejando resfriar essa inquietação, chamaram-lhe Deus, sem fato nem óculos, sem forma, um Espírito Santo, utilizando o poder do Espetro para tentar entender a sua própria existência...Em vão?
Poderá ser esse o caso, mas de qualquer forma, inconsciente ou não, lá criaram algures uma sala muito parecida com a descrita, com uma simples tela branca, onde se projetam grandes obras cinematográficas, frutos de grandes pensamentos, resultado da dádiva mais valiosa da Humanidade: a sua criatividade, aliada à inteligência e à imaginação. Pelo menos, ali naquela sala, parecida à sua, o nosso antecedente ancestral estaria orgulhoso, se alguma vez ele sentisse como nós sentimos.
Diogo Cunha, 28 de março de 2020 (em quarentena, esforço de sair do confinamento metafísica e não fisicamente, há que respeitar o isolamento social...)
Texto: Diogo Cunha - 2º ano
Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano