ÂNSIA CRÓNICA | Tinta Permanente

Dizem-nos sempre: “Não há nada permanente, tudo é passageiro”. Mas há passageiros demoradamente enganadores, sombras voláteis de um permanente que nunca serão.

“Para sempres” finitos, temo-los todos, a desfazer-se em decaimento como o cotão no fundo dos bolsos. Vai estando... Um dia trazemos de dentro a mão vazia, como numa realização lúcida do sentido de tudo. Já não há cotão.

Há passageiros que demoram, que demoradamente doem, ácido em gotas que nos lava a cada segundo, por Fado sagrado ou capricho se Deus, se é que são coisas diferentes. A velhice que docilmente se precipita para a esperança com o passar lento dos anos, ignorante de que a esperança é vinho mosto e, no fim, sabe a terra.

A lentidão, o padrão, o igual de todos os dias segue a turvar a visão do fim, rotineiramente. A lentidão é a derradeira sina, a prisão é repetida, tem simetria entre vida e vida. Somos assim levados a crer na errónea, cega e diabólica mestria do engano. Magia, macumba, superstição. Um guia, um mapa, uma mão, cada qual escolhe a corda para melhor se enforcar. 

Tango infernal, interminável na burla de ter acorde final, é o que dançamos mal acordamos para cumprir o acordo que escolheram para nós. E recolhemos amores, promessas de “sempres”, sempre, que sempre acabam. Comemos notas, arrotamos cêntimos, saciados de vazio. Não passam de atenuantes da pena na prisão da não perpetuidade, passatempos que nos distraem da passagem certa e certeira do tempo.

Vamos depois aos grandes livros, ilusões de sobrevivência ao destruir de tudo; damos ouvidos (e olhos, e dentes, e o corpo todo) às grandes vozes, cujos nomes todos sabemos de cor. Ingénuos, todos nós, que eles existem somente numa persistência parasita da existência nossa. Ajoelhamo-nos, rezamos, absorve-nos a Palavra da Eternidade paradisíaca, mas fustigamos a pele para oferenda a quem é tão finito como nós, sujo à nossa medida e que é, no fundo, espelho, mas de profundidade humilhante para quem nele mergulha e se entrega. E como se tivesse escolha...

Já nascemos entregues, vivemos o inevitável até se consumar o último passageiro. Tudo o mais é vento que passa. Por mais amor que dermos. Por mais florestas que plantarmos e por mais palavras que cravemos em papel inflamável, cadáver das árvores que regámos. Por mais filhos que trouxermos ao degredo, numa sacrossantificação deprimentemente cómica da fornicação a que todo se resume o animalesco do ser.

No final, ardemos com os livros que escrevemos e as florestas que criámos. Morre a memória. Sucumbem os grandes nomes. O Diabo ri! Ah, que riso encherá todos os cantos inexistentes do nada, o único permanente!

Violamos os nossos filhos quando os pomos no mundo. Impomos-lhes o sexo da felicidade engarrafada, comprimível em 100mg. Comemos-lhes os corações, o seu sangue sabe a casa e à indústria das cores. Os bebés mamam das mamas das mães petróleo negro. E o seu berço é um caixão cor de rosa, de plástico.

Duradouro! Seguro de vida! Segurança! Perfumado! Estabilidade! Tinta permanente! Tanta ilusão...

Dor no sangradouro da morte que segura a vida.

Esperança de derrame sobre a monstruosa idiotice, detestável e imunda, do respirar o sangue infeto que nos faz vivos.

É esta a tinta que recebemos das Vossas mãos, Cristo, Nosso Senhor! O Reino da Glória é um silêncio de morte e cheira mal. Louvado seja!


Setembro 2020

Autor: Ana Fagundes - 2º Ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano