Comentário
A ironia de um texto intitulado “A Grande Pandemia”, publicado no início de dezembro de 2019, não passa despercebida. Há 13 meses, a vida era diferente, com uma leveza inalcançável para a maioria de nós neste momento. Porém, mesmo quando o sol brilhava, existia uma grande nuvem cinzenta a ameaçar-nos: as alterações climáticas. Num ano marcado por algumas boas notícias, como a intenção do presidente dos Estados Unidos da América de regressar ao acordo de Paris, ou o ligeiro decréscimo momentâneo das nossas agressões ao planeta durante o confinamento de março, é importante relembrar que a luta não acabou. Desde mais refugiados, a novas doenças infeciosas, a consequências graves na nossa saúde, a mudança do clima tem um impacto tão grande em nós como nós temos no clima. E, perante a indiferença de quem mais podia fazer a diferença, para lidar com esta crise não podemos esperar por um novo Estado de Emergência.
A Grande Pandemia: Alterações Climáticas
Ondas de calor. Dengue. Ciclones. Asma. Vagas de frio. Melanoma. Secas. Depressão. Incêndios. Cancro do pulmão. Desnutrição. Malária. Enfarte. Cataratas. Acidentes. Diarreia. Alergias. Inundações. Refugiados. Estes são apenas alguns exemplos de consequências das alterações climáticas que afetam a saúde a nível global.
O planeta sempre sofreu mudanças no clima, mas nunca estas foram tão rápidas e tão dependentes da atividade de uma única espécie. A temperatura aumenta, os glaciares derretem e os padrões meteorológicos adulteram-se, originando desastres naturais que provocam a morte a 60 mil pessoas por ano, a maioria em países em vias de desenvolvimento
e com fraca resposta sanitária e humanitária, um número que quase triplicou desde 1960 (1). No momento em que esta reportagem é escrita, chega a notícia de que a Índia declara Estado de Emergência de saúde pública na capital, Nova Deli, devido à poluição atmosférica. Foram distribuídos 5 milhões de máscaras na cidade e estima-se que 700 milhões de indianos vivam expostos a níveis tóxicos de poluição (2).
Ar puro. Água potável. Alimentação saudável. Abrigo seguro. Os principais determinantes de saúde ambientais e sociais estão em risco. O que podemos esperar desta Pandemia? A seguir, uma breve exploração de alguns dos maiores desafios das alterações climáticas à saúde das populações.
Ondas de calor
Segundo a World Meteorological Organization uma onda de calor é um período superior a 5 dias em que a temperatura máxima registada ultrapassa a temperatura máxima esperada por mais de 5ºC. Com as alterações climáticas as ondas de calor tornaram-se mais frequentes e mais intensas por todo o mundo. Apesar do aumento da temperatura ser global, as populações menos preparadas são as dos países temperados, onde as infraestruturas são principalmente desenhadas para reter calor durante o inverno (3).
Os verões europeus têm se tornado cada vez mais severos, sendo registados recordes de temperaturas máximas na Europa Central durante o verão de 2019 (4). Contudo, após a onda de calor de 2003, com mais de 70.000 mortes atribuídas por toda a Europa, tem havido uma maior preocupação dos governos em informar e proteger a população (5). Os mais afetados são os idosos, as crianças e pessoas dependentes nas atividades de vida diárias. De um ponto de vista socioeconómico, as pessoas que vivem isoladas ou com poucas condições, sem equipamentos de refrigeração, estão em maior risco de sofrer consequências negativas durante uma onda de calor (3).
Durante as ondas de calor há maior afluência aos serviços de urgência, tanto por descompensação de doença de base, como por casos de insolação e desidratação em adultos saudáveis e ativos (como exemplo desportistas ou trabalhadores da construção civil) (3). Os sintomas de insolação mais frequentes são sudorese, alterações de estado de consciência e síncope; são sintomas inespecíficos que podem ser desvalorizados, especialmente pela população mais ativa.
Além das altas temperaturas, as ondas de calor são ainda responsáveis por aumento das concentrações de poluentes atmosféricos, dos quais se destacam O3 e PM10 (partículas inaláveis de diâmetro inferior a 10 micrómetros) (6). Estes poluentes têm ação independente no agravamento de doenças respiratórias e vasculares, facilitando estados pró-inflamatórios e pró-trombóticos (7). Porém, durante ondas de calor e especialmente nos grandes centros urbanos, atuam sinergicamente com as temperaturas elevadas e a desidratação no aumento de sintomas tanto em pessoas saudáveis como em doentes.
A Península Ibérica tem sido relativamente poupada das ondas de calor das últimas décadas, protegida pelas massas de água que a rodeiam. Todavia, Portugal tem uma população cada vez mais envelhecida, isolada e carenciada. Além de emitir alertas nos dias de maior perigo, a Proteção Civil cria também abrigos temporários de livre acesso em zonas mais carenciadas.
Poluição Atmosférica e Alergias
O atual aumento exponencial nos casos de reações alérgicas não é, de todo, independente das alterações ambientais das quais o nosso planeta é vítima. Com efeito, pensa-se que é esta a principal causa do emergente número de casos de alergias, bem como do agravamento das mesmas (8).
Uma alergia é uma resposta exagerada do sistema imunitário a estímulos benignos externos do meio, mediada por imunoglobulinas E. Dentro do grupo das alergias mais frequentes, é de ressaltar a asma brônquica, doença que atinge cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo (9). Esta patologia caracteriza-se por uma inflamação dos brônquios, que leva à diminuição do seu lúmen e que se manifesta clinicamente por tosse, pieira e dispneia (10).
A poluição, nomeadamente a atmosférica, tem como causa relevante a emissão excessiva de gases resultantes da queima de combustíveis. Como exemplo significativo, distinguem-se as Diesel Exhaust Particles (DEPs), partículas derivadas da combustão do Diesel dos veículos motorizados. Estas partículas são constituídas por um carbono elementar central, que incorpora uma variedade de substâncias, nomeadamente hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, cetonas, álcoois, cicloalcanos, bem como aerossóis de origem orgânica que, por si só, já detém um carácter alergénio considerável (7). Agregadas às DEPs, estas substâncias químicas orgânicas, como as partículas em suspensão no ar (pólen), formam macromoléculas com potencial alergénio acrescido, tendo consequências consideravelmente piores do que aquelas que as partículas orgânicas isoladas, relativamente ao desencadeamento de reações alérgicas.
Doenças Infecciosas
A transmissão de doenças com origem hídrica e alimentar é largamente dependente das condições climáticas, uma vez que a precipitação influencia o transporte e disseminação de agentes patogénicos, enquanto a temperatura afeta a seu crescimento e sobrevivência. Também a ação humana, através da descarga imprópria de resíduos, contribui para potenciais ameaças à quantidade e qualidade da água e alimentos, comprometendo a segurança alimentar (11,12).
O clima é ainda o grande responsável pelo perfil de distribuição das doenças infecciosas transmitidas por vectores. É provável que o período sazonal de transmissão e a distribuição geográfica de determinadas doenças alargue, como já ocorre na China com a Schistosomíase (1), uma parasitose dos climas quentes. A malária continua a ser um grande problema de saúde pública, matando mais de 400.000 pessoas por ano, sobretudo crianças africanas com menos de 5 anos. No Brasil, os casos de dengue aumentaram sete vezes em 2019. Estas são duas doenças transmitidas por mosquitos, Anopheles e Aedes, respectivamente, cujo ciclo de vida é extremamente sensível às condições climáticas, especialmente à temperatura e precipitação (1,11).
Desastres Naturais
As inundações e ciclones causam devastações que se traduzem em danos materiais e perda de vidas humanas, com um aumento significativo de casos de afogamento, trauma, acidentes e ansiedade generalizada (12).
Metade da população mundial vive a menos de 60 km do mar (1). O aumento do nível médio das águas e a escalada de eventos extremos de natureza meteorológica destruirão casas, infraestruturas sanitárias e outros serviços de assistência às populações (1). As comunidades serão forçadas a migrarem, criando os chamados refugiados climáticos. Surgem assim riscos associados à aglomeração de populações deslocadas e stress psicossocial (11).
Concluindo, entre 2030 e 2050 as alterações climáticas serão responsáveis por 250.000 mortes adicionais por ano, 38.000 nos idosos por ondas de calor, 48.000 por diarreia, 60.000 por malária e 95.000 por desnutrição infantil (1). É urgente não só a criação de políticas, mas também tomar decisões individuais que visem suportar uma resposta global de saúde pública perante esta pandemia que poderá ser a última que a Humanidade enfrentará.
(1) WHO (2019) Climate change and health. Consultado a 2 Novembro 2019, https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/climate-change-and-health; (2) Público. (2019). Poluição: estado de emergência de saúde pública declarado em Nova Deli. https://www.publico.pt/2019/11/01/mundo/noticia/nova-deli-distrubui-cinco-milhoes-mascaras-devido-niveis-toxicosar- 1892166; (3) Kovats RS, Kristie LE. Heatwaves and public health in Europe. European Journal of Public Health 2016 Dec; 16 (6); 592–599; (4) Baker, Sinéad (25 July 2019). Europe is battling an unprecedented heat wave, which has set records in 3 countries and is linked to at least 4 deaths".Business Insider. Insider Inc.; (5) Robine JM, Cheung SLK, Roy SL et al. Death toll exceeded 70,000 in Europe during the summer of 2003. C. R. Biologies 2008; 331; 171–178. (6) Analitis A, Michelozzi P, D’Ippoliti D et al. Effects of Heat Waves on Mortality. (7) Epidemiology 2014 Jan; 25 (1); 15-22. (8) Anderson JO, Thundiyil JG, Stolbach A. Journal of Medical Toxicology 2012 Jun; 8 (2); 166–175. (9) Clark, T. (2000). Asthma. 3rd ed. London: Arnold. (10) Takano, H., & Inoue, K. I. (2017). Environmental pollution and allergies. Journal of toxicologic pathology, 30(3), 193–199. doi:10.1293/tox.2017-0028; (11) DGS (2019). Consultado 27 Outubro 2019, em https://www.dgs.pt/em-destaque/ dia-mundial-da-asma-3-de-maio-pdf.aspx; (12) WHO (2019). Climate change and human health - risks and responses. Summary.Consultado a 2 Novembro 2019, em https://www.who.int/globalchange/summary/en/index5. html; (13) Tavares, António. (2018). O Impacto das Alterações Climáticas na Saúde. Acta Médica Portuguesa. 31. 241. 10.20344/amp.10473.