Escreve-se muito sobre o amor. Porventura ainda mais sobre o desamor, mesmo que não se queira admitir. O que permanece por ser escrito vai-se vivendo ou esmorecendo, com a ilusão de que será diferente de uma próxima vez, quando chegar; ainda que chegue sempre, mas nem sempre seja suficiente.
Não será novidade escrever que o amor cega ou que esta cegueira é particularmente agressiva para quem não quer ver. Caminha-se uma vida inteira com blindagem contra a desilusão, com lucidez e racionalidade que se pensam ser em doses certas para afastar qualquer hipótese de coração partido e, contrariando os mais céticos, até vai funcionando. Mas há momentos - épocas, diga-se, porque de brevidade nada têm - em que a infalível proteção cai ou em que o escudo é voluntariamente deitado ao chão. Os muros são derrubados e a cegueira é tal, que qualquer atacante só é percecionado quando já não há possibilidade de recuperar o território invadido.
As pessoas não gostam que lhes digam a que horas devem acordar e vai-se tornando transversal a todos os campos de batalha esse vício de ignorar alarmes. Eles tocam e tocam e tocam. Só que esta forma peculiar de cegueira também ensurdece.
Permanece-se dando o peito às balas ou às setas do cupido, que não é por não serem reais que doem menos. Sem cerimónia, as costas são apunhaladas com uma celeridade e eficácia desmedidas. Nessa altura, em modo de câmara lenta, a visão turva não parece afetar a clareza colossal com que se assiste aos golpes que chegam apadrinhados pelo afiado sentimento. O atacante pára para olhar e vai demorando enquanto vê; vê porque não cegou. Permanece, fica, resta. Planeia a próxima emboscada e só se distancia da presa depois de se salvaguardar noutra terra firme.
As setas acabam, mas o coração ferido ainda bate. Sobra crueldade no abandono de um peito aberto a golpe, que outrora se abriu somente para servir de aconchego. Porém, se enquanto há vida há esperança, o coração que ainda bate é um bom indicador: certamente aguardará a próxima batalha no campo do amor.
Autora: Beatriz Francisco
Edição de Imagem: Catarina Simões