Agosto 2021,
Não chove há 23 dias, mas a noite tem um cheiro húmido.
Saio pela janela para me sentar numa réstia de telhado, numa indefinível réstia de dia para inspirar, no ar, as folhas tristes e frias, a terra suada, as lágrimas dos gatos e dos loucos, o transpirar do mundo depois do labor do dia.
O cheiro da noite, limpo, pontiagudo, toca-me como uma mão firme, de homem, na pele levemente arrepiada.
Não se ouvem as árvores, com as suas folhas em lutas genealógicas, como era dantes costume. Não há vento, também. Mas há gatos, porque certamente há ratos. E há carros, porque certamente há pessoas, mas esta condição tem muito pouco de certa.
Pouso as enxaquecas nos joelhos encolhidos. O zumbido cósmico, o murmurar das estrelas com a lua, contempla-me na sua melodia: “lá em baixo, vêem? Entre a chaminé com falhas de tinta e o carvalho velho... Aí mesmo, esse ponto minúsculo! É um ser da noite”.
Mas nada disto é real, palpável, memória se não de delírio de dor. As estrelas são indiferentes ao nosso destino e, segundo as pessoas sérias, que são cínicas, as estrelas não falam entre si. E, segundo as pessoas cínicas, que sérias são, a lua está morta... E o sol é só um homem macabro e narcisista, metade humano, metade pedra, o que é o mesmo que dizer que é todo ele humanidade, que se usa do cadáver belo da amada lua para não largar a Terra, nem depois do pôr-se-de-si-mesmo.
Não sou um ser da noite. Não sou um ser de ser de o quer que seja. Nem sei ser ser, nem ser que sabe ou quer saber. Sei que não sou. Ser, pelo menos, ou que o valha ser, que não sou. Mas por alguma razão há carne sobre ossadas que me dizem minhas...
Há um corpo com nome de eu, sentado numa réstia de telhado, num resquício de dia, tentando ser um resto de ser. Como um trapo sujo, como um pano roto, um corpo usado. Outrora peça da moda, descansa, agora, na sua campa calma, a que tem sabor de abandono e cheiro de desamparo.
E ao longe canta um pássaro. Degolado.
Autoria: Ana Fagundes
Ilustração: Catarina Filipe
Edição de Imagem: Catarina Simões