ÂNSIA CRÓNICA | Humanamente em flor

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Humanos: vistos do céu, somos um formigueiro azafamado, a eliminar, distraidamente, tantos outros formigueiros. Descemos um pouco e, quase ao nível do solo, somos cardumes da mesma espécie num tráfego de elementos, posses e símbolos, sem que nos fundamos completamente, preservação egoísta da paradoxal individualidade do grupo. Então, pousamos os nossos pés frente aos pés dos outros, levantamos os olhos e fitamos duas nebulosas, umas cheias, brilhantes de possibilidades, outras baças, em busca de uma remanescência de hélio, ou de hercúlea força, para continuarem quentes e seguras. Alinham-se com buracos negros laterais, famintos de informação, de códigos por decifrar que possam refrear o caos de explosões em turbilhão que eclode no cofre craniano. E no vértice inferior do triângulo a formar, o gramofone, pulposos gomos de toranja rubra, suaves ao toque, galvanizante para os recetores mil, húmidos como uma saudade de mar, abertos ou fechados, belos artesãos de sons, os últimos a tocar a melodia da lira vocal, projétil de símbolos invisíveis, lançados para o espaço entre cada mundo humano, supersistemas-extremidade da sinapse da incerteza, onde tombam olhares e sorrisos, inseguranças e medos, confissões tímidas e cacos. 

E, então, furamos um crânio. Mas não vemos senão uma pastosa massa cinzenta, coberta de aguarela sanguínea. E por mais aproximações que façamos, a microscopia não encontra as nossas cicatrizes mais encobertas no citoplasma das células, nem do cérebro, nem do coração. Onde estamos nós? O mundo humano que vemos quando nos olhamos uns aos outros nos olhos é um lugar sem nome por descobrir, sempre indescoberto, botão de uma abstratamente colorida flor que nasce do caos, o caos que lhe corre nos vasos e a nós faz quentes as veias, que tem pétalas de metal, cofre inviolável, de violento interior indecifrável.

Não pousamos as nossas mãos na relva do mundo dos outros, e nos seus rios de lágrimas, jamais nos banharemos. É impossível até antever este mundo que a flor, com seu caule frágil, sustenta. Ouvimos os seus pássaros cantar, mas o som vem distorcido e sujo, é mero símbolo do grito que dói. E mesmo quando se contorcem os rostos, são uma milésima do quão torto está o interior, do quão tortuosa se tem a alma. O olhar é a mais sincera das radiografias, a escavação mais profunda, mas é, ainda, insuficiente. Se das nebulosas se soltam braços, cujas mãos se encontram e entrelaçam, o toque luminoso que um recebe é filtrado pela sua íris, e a mensagem do outro é já uma de nós próprios para nós mesmos. 

Nunca ouvimos os outros e a ponta dos nossos dedos nunca toca as suas chagas, a podridão do seu sangue jamais a descobrirão as nossas narinas e ver o sal seco do seu choro ser-nos-á sempre impossível. Olhamo-nos e vemo-nos refletidos, interpretamos os outros à nossa imagem e semelhança, como deuses de nada que somos todos. As palavras que os outros nos dizem não nos ferem, não nos inferem a dor que os inferna. Somos um formigueiro de cofres fechados, abandonados à incompreensão de si mesmos, na mesmice de se estar só, irremediavelmente só, num oceano de tentativas de empatia falhadas, de esperanças ancoradas, de ligações deslaçadas…

Num mundo de humanos, humanos muitos, humanos mundos, muitos mundos selvagens, na virginal solidão de um jardim por florir.

Texto: Ana Fagundes - 1º ano

Fotografia: Miguel Henriques - 6º ano