Desprimorosa decisão administrativa
Teve o nobilíssimo governo cerebral.
Decidiu por unanimidade irreflexiva
Privatizar um vital órgão estatal.
Presto e sonante se arvorou o protesto
Dos muitos cardiomiócitos sindicalizados
Ao ver o seu meio de produção honesto
Assim tomado por glamorosos privados.
Como se a produtividade lhes desagradasse,
Os novos gestores decretaram no momento
Que a frequência cardíaca aumentasse
Na ordem dos oitenta e um porcento.
Como para isso não detinham capital,
Anexando um suborno em dopamina,
Candidataram-se a um subsídio estatal
Que lhes chegou sob a forma de epinefrina.
Graças aos cardiomiócitos explorados,
A taquicardia tão brutalmente imposta
Rendeu débitos cardíacos assaz avultados
Aos gestores, sequiosos de lucrativa resposta.
Mas como a qualquer grande faturação
Se sucede invariavelmente uma derrota,
O tecido fabril, atingindo a exaustão,
Por pouco não determinou a bancarrota.
A segunda ruinosa deliberação
Do diligente executivo bipolar
Foi deslocalizar a sede de gestão
Do nó sinusal para a junção atrioventricular
Esta medida, diziam eles, visava corrigir
O deletério efeito do imposto antipático.
Procuraram assim aos encargos fiscais fugir
E ao controlo simpático e parassimpático.
Presunção mais apartada da realidade
Não podia ser proferida com efetivo rigor.
O corte em três vezes da produtividade
Foi o único efeito de tamanho despudor.
A douta administração declarou imediatamente:
“Escolham: despedimentos ou insolvência”.
Mas isso só agravou o que estava decadente.
Surgiram sinais de cardíaca insuficiência.
O setor atrial ficou assim disfuncional
E a fábrica passou a funcionar a meio gás.
Diziam eles “é ritmo de escape juncional”,
Eufemismo que até aos oprimidos apraz.
A indústria pulmonar foi das primeiras
A sofrer os efeitos sistémicos de tal gestão.
Veio a público denunciar as cardíacas asneiras
Que provocaram nela geral inundação.
O edema pulmonar acarretou como resultado
O decréscimo da importação de oxigénio.
Respondeu o cardíaco gestor abnegado:
“Então, passem a importar nitrogénio”.
Uniram-se em protesto irredutível
Outros órgãos de boa prestação e fama.
Denunciando uma hipoxia indesmentível,
Exigiram ao governo um eletrocardiograma.
Já o ministro da Indústria e do Labor,
Do alto do núcleo do trato solitário,
Não interveio (a despeito do clamor),
Sob receio de ser chamado totalitário.
O desemprego era discretamente evidenciado
Pela elevação da creatina cinase sérica.
Nem o facto de os valores terem duplicado
Fez o governo acordar da sua ilusão feérica.
E eis que se sucedeu o inevitável findar
Naquele fatídico e malfadado dia:
A indústria entrou em fibrilhação ventricular
E logo de seguida em fatal assistolia.
E agora jaz empedernida toda a sociedade,
Cardiomiócito operário, capataz e gestor.
Todos eles em idílica e serena igualdade
Lado a lado na necrose e ausência de dor.
Mediastínica fábrica outrora tão fecunda,
Como te deixaste tomar por mão privada?
Como te tornaste carcaça moribunda?
Mais valia teres sido renacionalizada!
A quem privatizei o meu complexo industrial cardíaco
7 de maio de 2017
Texto: Vasco Lobo - 4º ano
Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano