A tauromaquia tem-nos sido apresentada como ordem do dia, abrindo jornais televisivos, dando mote a diversas publicações, despoletando diferentes pontos de vista e sendo rastilho para as já habituais ácidas e intolerantes discussões patrocinadas pelas redes sociais.
Acredito que tudo tenha voltado a ser tema de conversa quando, no verão passado, no dia seis de julho, a Assembleia da República chumbou uma proposta do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) que pretendia a abolição das corridas de touros em Portugal. O projeto teve os votos contra do Partido Social Democrata (PSD), Partido Socialista (PS), Partido Centro Democrático Social- Partido Popular (CDS-PP) e Partido Comunista Português(PCP) e os votos a favor do PAN, Bloco de Esquerda (BE) e Verdes. E o que pensam os portugueses? Entendo que estão divididos, opinião que acaba por ser corroborada através do anúncio dos (diria, caricatos) resultados do orçamento participativo português. Se não, vejamos, como projetos aprovados no concurso de âmbito nacional encontramos a proposta número 433, “Tauromaquia para Todos”, integrado na categoria “Cultura”, representando uma fatia de 50 000 euros, mas, para incitar e alimentar a discussão, também verificamos que foi aprovado o projeto número 761, “Portugal sem Touradas”, no domínio da “Educação, Desporto e Juventude”, com um investimento de 200 000 euros. O primeiro defende “a criação de um programa de difusão de informação e conhecimento sobre a cultura tauromáquica de Portugal”, já o segundo, pretende “desmistificar os princípios em que a atividade se autojustifica e contribuir para a construção de um pensamento crítico face à mesma no seio da sociedade portuguesa”. Sendo o orçamento participativo português “um processo democrático deliberativo, direto e universal”, esta escolha acaba por ser representativa da dicotomia de opinião do povo português e algo que tem por base objetivos que colidem.
A mais recente controvérsia sobre o tema, à data da redação deste artigo (e acredito que esta novela não acabará por aqui), é-me apresentada como mais uma “salgalhada parlamentar”. O Governo, através da proposta de Orçamento do Estado para 2019, propõe a redução do IVA de 13 para 6% para a maioria dos espetáculos, tendo como exceções o cinema, os espetáculos de música ao ar livre e as touradas, para as quais mantém os atuais 13%. O BE e o PAN, por recusarem as touradas, pretendem um IVA mais alto; o PCP, o CDS/PP, o PSD e, pelo menos uma parte, a própria bancada do PS, contrariando a opinião do primeiro-ministro, propõem a redução do IVA das touradas para os 6%. Toda esta “contenda” foi exacerbada quando, no debate do Orçamento do Estado para 2019, Graça Fonseca, atual ministra da Cultura, recusou a descida do IVA incidente sobre a tauromaquia de 13 para 6%, dizendo que “não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização”. A juntar a estas polémicas, sendo também curioso mas incongruente, segue-se o facto do Governo manter a taxa reduzida para as prestações de serviços de artistas tauromáquicos e propor, para os ingressos nos espetáculos onde estes intervêm, o IVA a 13%.
Pessoalmente, não consigo conceber a redução do IVA para uma taxa inferior em espetáculos tauromáquicos do que, por exemplo, para assistir a um espetáculo de música ao ar livre, a realização de uma visita ao Jardim Zoológico, a um Aquário ou até a ida a uma consulta veterinária.
Quanto à discussão entre aqueles que defendem e os que recusam a corrida de touros “à portuguesa”, que inclui a atuação dos cavaleiros, pegas e toureio a pé, encontramos, fundamentalmente, como argumentos, por um lado, a defesa das corridas de touros enquanto elemento representativo da cultura portuguesa, a continuação da espécie do touro bravo que é usado quase exclusivamente em corridas de touros, a dinamização económica das regiões onde se promovem estes eventos, a melhor qualidade de vida que é proporcionada aos animais comparativamente aos que estão estabulados e a dignificação do touro, porque acreditam que, assim, atinge como que o apogeu da sua existência ao participar na tourada. Por outro lado, encontramos aqueles que defendem os direitos dos animais, lutando pela erradicação de qualquer atividade que põe em causa o bem-estar animal. Identifico-me com o segundo grupo. É inegável que a tauromaquia representa parte das nossas tradições, mas não me parece que possa ser entendida e defendida como parte da nossa cultura. Manter as touradas com o argumento de preservarmos as nossas tradições, a todo e qualquer custo, parece-me despropositado, assim como entendo que a cultura não poderá estar associada à violência gratuita infligida aos animais.
Sobre o argumento relativo à manutenção da espécie, admito que poderá ser difícil, mas se é tão característica do nosso povo, porque não promover a sua divulgação e valorização como achado autóctone? Desse modo, conseguir-se-ia mitigar ou contrariar as dificuldades económicas das regiões tipicamente tauromáquicas. Já quanto à qualidade de vida animal, não podemos escudar o fim miserável que é dado ao mesmo pela simples justificação da sua sobrevivência. Discutindo a alegada nobreza da luta entre os vários intervenientes das touradas, simplesmente não posso concordar que se trate de uma luta em que os opositores se encontram em pé de igualdade. Com efeito, o animal, naturalmente e por vontade própria não estaria ali, não lutaria e, certamente, não passaria por uma apertada, forçada e muito discutível forma de seleção artificial, onde são testadas tanto as qualidades de transmissão genética das fêmeas como a virilidade dos machos, entenda-se resposta agressiva a estímulos provocados por humanos.
A tourada não é um duelo, é uma luta desigual. Não é crível que o touro entrasse de livre e espontânea vontade dentro de uma carrinha transportadora, quisesse ser espicaçado ou ter os seus chifres embolados, bem como atravessar um corredor que, curiosamente, tem apenas uma saída, enfrentar uma arena ruidosa e luminosa (ou não), para depois ser enganado, provocado, espetado, magoado, esgotado e, possivelmente, abatido. Para mim parece-me óbvio o sofrimento do animal, sobrepondo-se este a qualquer outro argumento contrário. Vivemos no século XXI, num país com tantas e tão bonitas tradições das quais, enquanto Povo, podemos e devemos nos orgulhar, sendo, na minha opinião, dispensável e descabida a continuação desta tradição nos termos e condições em que se realiza atualmente.
Ora, como considero que nada melhor do que apresentar uma história verdadeira para poder ser representativa do ponto de vista de quem a defende, apresento-vos a minha. Quando criança, tinha por hábito ver, em família, sobretudo com o meu avô, as touradas que passavam na televisão. Ficávamos durante horas a fio entretidos, aproveitando para observar e comentar a prestação dos cavaleiros, forcados e de todos aqueles que participavam no que, à época, eu considerava ser um empolgante espetáculo. Com o avançar da idade, cresci e, claro, desenvolvi o meu sentido crítico, podendo dizer que hoje não compactuo com a manutenção do que se considera serem touradas “à portuguesa”, nas condições atuais. Por conseguinte e em coerência, defendo que aquelas devem ser erradicadas da televisão portuguesa. Não porque entenda que com o espectáculo se proporcione o aliciamento das crianças para a esfera tauromáquica, mas porque, ao contrário, podem ferir a sua sensibilidade e, sobretudo, pelo facto de, atualmente, não encontrar quaisquer argumentos que justifiquem o tratamento a que se sujeitam os animais.
Julgo que a realização das touradas à portuguesa, nas condições atuais, não se coadunam com aquilo que defendo como identitário do nosso Povo. Ainda assim, gostava que esta minha história pudesse servir de reflexão e discussão acerca do tema, como acontece dentro da minha própria família, mas nunca enquanto pretexto para alimentar o ódio, como, lamentavelmente, já o temos testemunhado entre quem defende e combate as touradas. Ou seja, também sobre este tema, é preciso mais tolerância.
Já agora, outro testemunho, após a reunião em que ficou decidido que escreveria um texto sobre a tauromaquia, rumei a casa. Era já hora de jantar. Durante a refeição, aproveitei para conversar com as minhas colegas de residência sobre como tinha corrido o meu dia e escutei o que me diziam sobre o seu. Já no final do jantar, deu-se uma grande coincidência, para quem acredita em coincidências, ou acasos, para os que neles não acreditam, quando uma das minhas colegas perguntou se podia mudar de canal televisivo, “passar para a RTP1”, porque ia dar a tourada. Fiquei perplexa com o pedido e manifestei-me contra as touradas organizadas nos moldes atuais. Revelei-lhes que, a propósito, iria escrever um texto sobre a tauromaquia. Trocámos ideias sobre o tema, designadamente o método de escolha das ganadarias, a eventual manutenção das touradas mas noutros moldes que não impliquem o sofrimento e morte do animal, manter a pega dos forcados, acabar com a lide a cavalo ou alterar a forma como é realizada atualmente. Sugeri, escutei, discordei e concordei. No final, as opiniões de umas não se impuseram às demais e, curioso, não chegámos a mudar de canal.
Quanto ao futuro, se me perguntarem se acredito que as corridas de touros irão acabar, respondo que não sei mas espero que sim, defendendo a minha perspetiva. Aliás, se em 1836 as touradas foram proibidas em Portugal, por Decreto, com o argumento de serem “um divertimento bárbaro e impróprio das nações civilizadas, que serve unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade”, não vejo porque não poderão voltar a ser banidas.
Raquel Morgado, 2º ano
Ilustração por Carolina Daniel, 4º Ano