Existem terapeutas musicais?

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- Acho que vais gostar deste. – afirmou a minha mãe, entrando no meu quarto sem bater à porta (como sempre) e pousando um livro em cima da minha secretária.

Olhei para o livro, curiosa. Normalmente, quando a minha mãe me diz que vou gostar de um livro, acerta. Conheço a autora: Jodi Picoult. A escritora norte-americana tem-se tornado uma das minhas predileções mais recentes. Contudo, desconheço o título: Uma Melodia Inesperada.

- Depois quero saber o que achaste. – Continua à minha mãe, saindo do quarto tão depressa quanto entrou.

Não vou descrever aqui a história pormenorizada do livro (que recomendo), apenas comento que uma das personagens principais era terapeuta musical. Este conceito revelou-se uma novidade para mim. Existem terapeutas musicais?

Claro que é fácil acreditar que a música pode aliviar a ansiedade ou a tristeza ou o stress quando nós próprios já experimentámos isso. Quantos de nós não ouvimos músicas deprimentes quando estamos tristes porque sentimos que isso nos ajuda a lidar com a nossa tristeza? Ou colocamos música melancólica em viagens compridas de autocarro só para podermos olhar pela janela e pensar na vida? Ou ouvimos música animada em momentos mais aborrecidos para tentarmos levantar o nosso ânimo? Quem não ouve o Bailando e não pensa de imediato na Noite da Medicina e não dá por si a sorrir com isso?

No entanto, a ideia de existirem profissionais que se dirigiam aos hospitais e aos lares e às escolas para realizar terapias com música suscitava-me alguma confusão. Fui lendo o livro com interesse, acompanhando a terapeuta musical à medida que ela acompanhava um velhote catatónico num lar de idosos, uma adolescente deprimida e diversos recém-nascidos, ao mesmo tempo que me perguntava se esta nova prática teria muita adesão nos Estados Unidos da América.

O livro descreve particularmente bem a interação entre a terapeuta musical e uma adolescente deprimida; a forma como a personagem utiliza a música para interagir com uma rapariga que se isolou de tudo e de todos, como utiliza diversos instrumentos para que ela se possa expressar ou simplesmente libertar toda a frustração que existe dentro dela e como, aos poucos, a rapariga começa a ver aquelas sessões como um escape e não como uma obrigação.

Quando recebi o email com o novo desafio proposto pela Ressonância, decidi naquele momento que iria pesquisar sobre este assunto.

A musicoterapia define-se como o uso clínico da música por um musicoterapeuta certificado para auxiliar os pacientes a alcançarem determinados objetivos individuais que incluem o alívio e controlo da dor, diminuição de sintomas de depressão e ansiedade, promover a reabilitação motora, a comunicação e o desenvolvimento cognitivo, entre outros.[1]  A musicoterapia inclui diversas atividades tais como composição de letras e de músicas, cantar, improvisar, aprender a tocar um novo instrumento, escutar simplesmente, analisar e discutir letras e até “tocar a fingir”. As sessões de musicoterapia são mais frequentemente individuais (apesar de também poderem ser em grupo), pois o objetivo é que cada sessão seja o mais adaptada o possível ao indivíduo.[2]

Foi com espanto que descobri que existe mesmo uma World Federation of Music Therapy, criada em 1985, e um Dia da Musicoterapia que se celebrou a 1 de Março de 2018.[3] Descobri que a musicoterapia já é utilizada em locais tão diferentes como a África do Sul, a Austrália, o Canadá e a India e em populações tão diferentes como as crianças, os idosos e os doentes psiquiátricos.

Todavia, uma dúvida essencial não deixava a minha mente: Funciona?

Novamente, voltei á minha pesquisa e descobri resultados muito interessantes…

  1. Comunicação funcional – A musicoterapia tem-se revelado particularmente eficaz em promover a comunicação em pessoas profundamente dementes (seja com Demência de Alzheimer ou outras demências). Crê-se que uma das explicações para isto é que a linguagem seja uma função adquirida mais recentemente pelo nosso cérebro, enquanto que a música e a comunicação não verbal são capacidades mais ancestrais e que podem mais facilmente ser reestabelecidas através desta terapia. Em diversos estudos de menores dimensões, a música revelou-se como um dos poucos estímulos a conseguir despertar reações por parte dos pacientes e levá-los a interagir com o ambiente à sua volta. [2]

  2. Cuidados Neo-Natais – Um dos principais locais onde a musicoterapia é aplicada é nas Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN). O som de ventiladores, bombas de infusão e de oxigénio, o ruído de macas e o murmúrio de vozes exaltadas são sons típicos que os recém-nascidos prematuros ouvem durante os primeiros dias de vida numa UCIN. Estes sons são quase impossíveis de desligar. No entanto, vários estudos apontam para que a música possa acalmar os bebés pré-termo e os seus pais. Tem-se verificado que a música diminui a frequência cardíaca dos bebés pré-termo, diminui o tempo de choro, aumenta o tempo de sono e pode melhor os hábitos alimentares e o desenvolvimento cognitivo dos mesmos.[4] Para além disto, também se pensa que a música possa servir como elemento de distração para os recém-nascidos, fazendo com que estes se foquem na música e se abstraiam da dor que sentem.[2]

  3. Geriatria – A musicoterapia tem uma vasta utilização na população geriátrica. Serve como elemento de motivação para a prática de atividade física, serve como um elemento capaz de reavivar memórias (todos sabemos que há músicas que guardamos profundamente associadas a lugares, pessoas, momentos, etc.), serve como um promotor da capacidade cognitiva não só por promover a aquisição de novas capacidades como por voltar a acionar capacidades que já possuíamos… E a lista continua. [2]

  4. Psiquiatria – A musicoterapia também é utilizada em diversas patologias do foro psiquiátrico e o mais incrível é que tem demonstrado eficácia em promover o relaxamento, a comunicação, expressão do próprio, capacidade de reflexão e processamento emocional. [2]

A lista de áreas onde a musicoterapia é aplicada continua, assim como as diversas formas em como a música pode auxiliar os pacientes. Existem vários websites e artigos que podem ser consultados.

Contudo, tendo terminado a minha pesquisa intensiva, sinto que ainda há muitos poucos estudos bem desenhados (estudos longitudinais aleatorizados, duplamente cegos e com placebo) e de grande escala que nos permitem tirar conclusões válidas sobre a eficácia que a musicoterapia aparenta ter. Mesmo aqui encontramos um desafio muito importante. Como é que podemos ter um ensaio com placebo duplamente cego para a musicoterapia? O grupo placebo seria um grupo que não escutaria nem tocaria música. Os pacientes deste grupo saberiam que não estavam a fazer musicoterapia, impossibilitando o caráter duplamente cego do estudo. Deixo parar no ar a pergunta de como poderíamos ultrapassar este obstáculo, por forma a podermos contestar ou confirmar muitos destes resultados aparentes.

Aguarda-nos um futuro de novas terapias, algumas menos convencionais que outras, de novas formas de aliviar o sofrimento e de estabelecer contacto com os nossos pacientes e, enquanto estudantes de medicina, temos que estar preparados para encarar estes desafios, saber informar-nos sobre os mesmos e saber informar os nossos pacientes.

Continuo fascinada pela musicoterapia e tão curiosa como da primeira vez que li as palavras “terapeuta musical”. Aguardo, impacientemente, para ver o que o futuro nos trará nesta área.

Fontes:

  1. Florida Hospital for Children. (2018). Music Therapists. [online] Disponível em: https://www.floridahospital.com/children/experience/who-you-meet/music-therapists [Acedido a 13 Set. 2018].

  2. Music Therapy Association of BC. (2018). How Does Music Therapy Work?. [online] Disponível em: http://www.mtabc.com/what-is-music-therapy/how-does-music-therapy-work/ [Acedido a 13 Set. 2018].

  3. World Federation of Music Therapy. (2018). World Federation of Music Therapy (WFMT). [online] Disponível em: https://www.wfmt.info/ [Acedido a 13 Set. 2018].

  4. Novotney, A. (2013). Music as medicine. [online] http://www.apa.org. Disponível em: http://www.apa.org/monitor/2013/11/music.aspx [Acedido a 13 Set. 2018].

Inês Abreu, 4º ano

Ilustração por Ricardo Sá, 4º Ano