O Netter É Arte?

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 Seria impossível sobrevalorizar a importância que o Atlas de Anatomia Humana, de Frank Henry Netter, teve para a formação de muitos de nós. As imagens minuciosas, detalhadamente legendadas, que permitiram a tantos uma compreensão mais clara e aprofundada da densa matéria que é a anatomia.

    Muito pensarão que será também possível defender este manual como uma obra de arte. Não apenas tecnicamente útil ou esteticamente bela, mas um feito artístico. Afinal de contas, como não? Tão sublimes as imagens, tão complexa a representação, tão brilhante o conteúdo.

    Brilhante, complexa, sublime? É razoável afirmá-lo. Mas arte?

    Em 1938, Robin George Collingwood publicou Os Princípios da Arte. Constituiu, na sua altura, um marco significativo para a teoria estética e, ao contrário do que seria de esperar, dedica boa parte desta obra a explorar o que não é arte.

    A arte não é uma forma de entretenimento, nem de magia (isto é, não visa despertar uma emoção predeterminada, como propaganda patriótica ou uma dança de guerra) mas, mais importante que isto, não é uma imitação ou representação. Collingwood argumenta que estas se encontram no domínio da técnica e que, ainda que uma obra de arte possa ser uma obra técnica, o contrário não é necessariamente verdade.

    Afirma que a arte se baseia na expressão de emoções, e que a identificação desta finalidade não pode ser separada da atividade artística, ao passo que numa técnica, a identificação da finalidade não depende do processo de produção (por exemplo, o sapato é identificado sem ser necessário recorrer à atividade de fabrico).

    Conclui que a genuína obra de arte reside na emoção do artista, e que a externalização é uma questão de técnica – por outras palavras, apenas uma obra onde o artista exprime as suas emoções é considerada arte.

    Posto isto, podemos concluir que Netter não foi nunca um artista, apesar de se identificar como tal, mas um mero ilustrador. As suas obras são, portanto, feitos técnicos magníficos com um enorme legado, mas não obras de arte. É uma conclusão razoável, mas talvez haja algo mais por trás disto.

    Permanecem várias questões: apesar de técnicas, Netter exprimiu emoções através das suas ilustrações? Será que via no corpo humano não apenas um objeto de representação, mas também uma fonte de inspiração? Qual era a sua motivação para desenhar?

    O próprio parece esclarecer-nos no prefácio da 1ª edição da sua seminal obra: “Clarificação de um assunto é o objetivo e finalidade da ilustração. Independentemente de quão maravilhosamente pintado, quão delicadamente e subtilmente realizado seja um assunto, é de pouco valor como ilustração médica se não for útil a tornar claro uma questão médica”.

    Estas citações parecem pender fortemente na direção da técnica ilustrativa, e não da arte. Netter mostra entender como o seu papel reside na representação da verdade tal como ela é, não da realidade como ela é percecionada ou muito menos na expressão das emoções que ela desperta em si. Ainda mais, reveste-se de uma função pragmática - a clarificação de assuntos médicos complexos.

    E, no entanto, muitos dos seus objetos de desenho não são exclusivamente as condições médicas, mas a pessoa com a condição médica. O próprio afirmava, frequentemente, que não somos máquinas que necessitam de manutenção, mas seres humanos. Particularmente os seus desenhos de crianças parecem exprimir uma profunda empatia pela vulnerabilidade destes pequenos.

    Que devemos, então, fazer de tudo isto? Não pretendo, com esta reflexão, expor apenas a minha opinião pessoal sobre o assunto, nem não pouco apresentá-la como a única resposta razoável a esta problemática.

    A arte é um tema complexo, sob o qual se debatem filósofos e artistas há muitos séculos. Collingwood propôs uma perspetiva relativamente atual e bem fundamentada sobre o assunto, mas tem os seus críticos. Se há algo que não há na filosofia é consenso e muitas outras opiniões sobre o assunto podem ser consideradas.

    Gostaria apenas de apelar à reflexão profunda sobre esta temática, e mostrar como a alma e as motivações do ser humano são, muitas vezes, mais complexas do que inicialmente ponderamos. Nunca poderemos verdadeiramente compreender o que ia na alma de Frank H. Netter, nem tão pouco assumir que se absteve totalmente de transpor as suas emoções para o papel.

    No entanto, as suas obras permanecem um dos grandes feitos da anatomia moderna e, sem sombra de dúvida, não pecam por ausência de beleza. Seja arte ou técnica, seremos capazes de reconhecer o estado de prazer que a contemplação das suas imagens despoleta.

    Exceto quando chega a hora de estudar anatomia.

Fontes consultadas:

  • Kenny, Anthony. A New History of Western Philosophy - Volume 4: Philosophy in the Modern World. Oxford University Press, 2008.

  • Frank, Netter H. Atlas of Human Anatomy. Elsevier, 2014.

  • Netter, Francine Mary, and Friedlaender, Gary E. “Frank H. Netter MD and a Brief History of Medical Illustration.” Clinical Orthopaedics and Related Research, U.S. National Library of Medicine, 17 Jan. 2014.

  • Dominiczak, Marek H. “An Artist Who Vastly Enriched Medical Education: Frank H. Netter.” Clinical Chemistry, Sept. 2013.

António Velha, 2º ano

Ilustração por Miguel Silvestre, 5º Ano