Poetas dirão que um homem morre duas vezes: a primeira quando o seu corpo físico pára, a segunda quando a última pessoa que o conheceu dá o seu último suspiro. Certas (poucas) formas de perdurar além dessa lei incluem a arte e os feitos históricos, de modo que alguns atingem um estado de quase imortalidade, como Arquimedes, Júlio César ou Leonardo da Vinci. Com o tempo, Michael Jackson irá muito provavelmente juntar-se a eles.
Para a larguíssima maioria dos seres humanos nascidos entre as décadas de 70 e 90, a música de Jackson está, invariavelmente, integrada nas suas vidas, conjurando memórias de casamentos, discotecas e coreografias espontâneas em festas de Halloween. A voz era angelical, a dança era electrificante e o talento era inquestionável. Michael Jackson transcendia etnias, géneros, fronteiras e distâncias. Ser fã de Jackson era ser fã de um arranha-céus ou de uma corporação. Ou mesmo de um deus. No final dos anos 80 começaram as modificações corporais. Em 1993, a primeira criança falou.
Vi, há umas semanas, as quatro horas de Leaving Neverland. Para além das grotescas e minuciosas descrições de alegados actos sexuais, não há muito de especialmente revelador no documentário emitido em março pela HBO. Que Jackson era acompanhado por crianças que deviam estar na escola, e não misturadas com o jet-set internacional, era basicamente sabido e aceite por milhões de pessoas. Mesmo antes de clicar no play, sabia essencialmente o que iria ver. Há muito tempo que o público, dos fãs incondicionais aos apreciadores ocasionais, tem noção da sombra que envolve Jackson. O mundo, especialmente na América, conhecia a sua singular e heterodoxa auto-destruição há décadas. Simplesmente escolheu ignorá-la. Sobre o referido documentário, um jornal americano clamou ‘Nation in shock as documentary confirms everything they already knew about Michael Jackson’.
O problema é que ninguém quer o Michael Jackson de Leaving Neverland. Legiões de fãs afro-americanos aprenderam a compartimentalizá-lo quando viram a capa de Thriller, separando o génio dos facelifts, das rinoplastias e da pele cada vez mais clara. Simultaneamente, progenitores caucasianos deixaram-se encantar por uma alma gentil e infantil, o filho pródigo da América. O mesmo fascínio que levava pais a deixar os filhos menores dormir com o cantor, alegadamente cegos para abusos sexuais, era e é partilhado por milhões de pessoas, não tivesse Jackson abalado o mundo da música de uma forma que ainda hoje, 40 anos depois, soa revolucionária.
Contudo, as acusações também perduraram. Os testemunhos de Leaving Neverland são poderosos, gráficos e convincentes. Wade Robson e James Safechuck, na altura entre os 5-10 anos, descrevem a proximidade com o cantor como algo hipnótico. Ambos defenderam Jackson contra as alegações de 1993, retiradas depois de a vítima receber quase 25 milhões de dólares. Em 2003, novas acusações, ilibação total. Os próprios Robson e Safechuck viriam a processar Jackson, em 2013 e 2014, tendo os casos sido rejeitados por falta de provas. Jackson morreu há quase uma década, sem um único crime provado. A sua família definiu o documentário como linchamento público e processou a HBO. Um novo documentário, Investigating Neverland, conta a história do ponto de vista da sobrinha do cantor, Brandi Jackson, que manteve uma relação com Wade Robson durante sete anos, algo não referido em Leaving Neverland. Entre críticas aos acusadores e ao documentário original, como uma incongruência na timeline, admitida até pelo realizador, a polémica subsiste.
Apesar do terramoto internacional gerado por Leaving Neverland, uns minutos nas redes sociais mostram uma cisão monumental e diversa no público. Se há os que olham para o documentário como uma revelação chocante ou uma confirmação do esperado, há em igual medida todos aqueles que ou defendem a inocência do cantor, frisando a falta de provas, a volatilidade dos acusadores e as absolvições, ou afirmam que se interessam apenas pela música, ou ambos. Jackson mantém a sua influência mística: uma estrela não comete crimes.
No entanto, já não estamos em 1993 e Leaving Neverland coloca-nos um dilema moral enquadrado na era do #MeToo. Acreditando nas acusações, deveria haver algum tipo de consequência. Boicotar Jackson é sinalizar às suas vítimas que as ouvimos, que iremos deitar abaixo um falso ídolo. De facto, estaremos a apoiar todas as vítimas de crimes sexuais, a passar a mensagem de que o seu sofrimento é mais importante para nós do que as vidas dos seus agressores, mesmo que estes sejam tremendamente ricos, poderosos e talentosos. Não podemos processar Jackson mas podemos apagar as marcas da sua passagem na Terra, agir como se apenas o criminoso tivesse existido. Só que aí começa o desafio. Poderemos prejudicar o seu legado e apagá-lo da nossa consciência colectiva?
A vida e obra de Michael Jackson caminham de mãos dadas nos últimos 60 anos da História. Juntas, fizeram dele um fenómeno cultural de ramificações imensuráveis, muito para além da música. Na dança, Jackson foi um big bang, catapultando os estilos negros e passos obscuros, como o icónico moonwalk, para a ribalta, uma revolução em expansão ainda hoje. Da estrela cubana do ballet Carlos Acosta ao inspirador contemporâneo do asiático Akram Khan, a influência de Jackson foi imensa. Por muito que queiramos aplicar uma cancel culture, pura e simplesmente não existe um precedente para um cenário com a magnitude de Michael Jackson. Sim, estações de rádio na Nova Zelândia, no Reino Unido e no Canadá pararam de emitir a sua música; The Simpsons deixou de emitir o episódio com ele; estátuas têm sido destruídas e celebridades têm condenado o ídolo que outrora amaram. Ainda assim, mesmo que todos os serviços de streaming do mundo removessem as suas canções, continuariam a existir mais de 60 milhões de cópias físicas de Thriller espalhadas pelo globo. A própria existência de Jackson foi considerada um dos 80 momentos que moldaram o século XXI, juntamente com a world wide web, a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou a bomba atómica. Desde que o documentário foi anunciado, vendas e streamings voltaram a aumentar. Michael Jackson é demasiado massivo para ser cancelado. Mas ouvi-lo não parece correcto.
Incapaz de castigar o músico, a consciência do planeta precisa de algum apaziguamento. Não podendo nunca vir a ter a certeza sobre o que se passou no rancho de Neverland, as questões permanecem: Deveremos deixar de o ouvir? Apreciar a sua música faz de nós más pessoas? Bom, rever os nossos sentimentos em relação a outros casos pode ser útil. Alegações de assédio, má conduta e crimes sexuais pairam sobre centenas de celebridades. Kevin Spacey e Harvey Weinstein são agora nomes tóxicos em Hollywood. Deveremos erradicar a popular série House of Cards ou o filme de culto Pulp Fiction? Ignorar os contributos de Bill Cosby e R. Kelly para a indústria? Eliminar Dustin Hoffman, Louis C.K., Casey Affleck ou Bryan Singer? Deveremos cancelar todos os filmes, séries, canções, musicais, sitcoms e espectáculos com eles relacionados? Dylan Farrow, a filha de Woody Allen, acusou o pai de a ter violado em 1992, quando ela tinha apenas 7 anos. Roman Polanski fugiu dos Estados Unidos depois de ter sido acusado de drogar e violar uma rapariga de 13 anos em 1977. Deverei deixar de considerar Annie Hall e The Pianist como dois dos melhores filmes que já vi e nunca mais sequer falar deles?
É verdade que cinema e música não são exactamente comparáveis. Um filme é muito mais do que o seu realizador ou protagonista, envolve a colaboração de variadíssimas artes, ao passo que uma canção se pode dever em larga medida a quem a canta. Mas um crime sexual é imperdoável, é sujo, é vil. Tudo aquilo e todos aqueles associados ao criminoso partilham da sujidade e da vileza, em maior ou menor medida. Então onde colocar a linha? Quanto é que um indivíduo precisa de estar envolvido num trabalho para que dele seja considerado indissociável? Onde é que deixa de ser conveniente para o nosso entretenimento e passa a irritar a nossa moral?
Deveremos ignorar a pluralidade de We Are the World ou o dueto com Paul McCartney? E o trabalho dos Jackson Five? O veterano produtor Quincy Jones foi instrumental na criação de Off the Wall, Thriller e Bad. Descartamos as suas contribuições para o mundo da música? Onde fica Drake, que colocou Jackson de novo no topo ao incluir voz póstuma em Don’t Matter to Me? Onde ficam Muse, Lady Gaga, The Weeknd, Bruno Mars, Tame Impala, Justin Timberlake, Céline Dion, Chris Brown e centenas de outros artistas que são quem são porque Jackson os influenciou?
Depois de Leaving Neverland, a alma da música de Michael Jackson está conspurcada para sempre. Para muitos, para lá de qualquer redenção. Mas ele permanecerá embebido nas vidas de milhões de pessoas. O que sentirão daqui em diante é impossível definir e, francamente, é uma descoberta que cada um deve fazer por si. Vou arriscar e dizer que o mais provável é que ultrapassemos Leaving Neverland. Uma geração e o documentário será esquecido. Aconselho todos a vê-lo na mesma mas creio que a maioria, com o tempo, vai analisar os factos, contrapô-los com os seus sentimentos e decidir que consegue continuar a aproveitar a música de Jackson, ainda que possa nunca mais ouvir P.Y.T. (Pretty Young Thing) da mesma forma.
Mesmo as vítimas têm emoções contraditórias: ‘He helped me tremendously. He helped me with my career, he helped me with my creativity. And he also sexually abused me. For seven years.’ diz Robson no início do documentário. ‘He was one of the kindest, most gentle, caring, loving people I knew.’ acrescenta Safechuck. Isto é o aspecto mais extraordinário na vida de Jackson: tinha um lado que apenas podemos descrever como bom, ao mesmo tempo que era, provavelmente, um monstro. E isso é algo que a mente humana tem muita dificuldade em compreender. Talvez se vivêssemos numa sociedade onde a justice culture fosse tão voraz quanto a cancel culture, fosse mais simples separar as águas e entender a dualidade do ser humano.
Todavia, esta questão transcende Michael Jackson e denota um perigo emergente. Leaving Neverland deixa-nos com a preocupação de estarmos a contribuir para uma cultura de tolerância e silêncio para com o abuso sexual de cada vez que ligamos o rádio. Afinal de contas, o artista não existe sem o seu público. Bing Crosby era violento com os filhos mas todos os anos ouvimos White Christmas; histórias das indiscrições sexuais de bandas como The Beatles, The Rolling Stones, Led Zeppelin ou The Who não são difíceis de encontrar. Estaremos a entrar numa era em que um nicho da humanidade pode existir sem limitações? O mundo choca-se e pergunta-se como pôde permitir que Jackson atingisse um estatuto tão estratosférico que a sua marca no mundo se tornou permanente, ao mesmo tempo que endeusa figuras como Beyoncé, algo que até a própria fomenta.
A civilização humana é uma civilização intrinsecamente do espectáculo, atraída pelas câmaras, pela fama e pela ostentação como traças pela luz. O maior legado de Jackson é um exemplo sem paralelo de como a indústria do entretenimento prioriza o lucro acima do sofrimento e explora uma sociedade cega e alucinada que, em pleno século XXI, procura orientação e valores não numa universidade ou numa igreja mas num Coachella habitado por super-humanos que cantam e dançam.
José Durão, alumnus