“Aqui não há malucos, aqui há doentes... doentes da cabeça”
Uma das frases mais icónicas e que melhor resume o documentário de Jorge Pelicano.
“Pára-me de repente o pensamento” dá-nos a oportunidade de conhecer a realidade de um hospital psiquiátrico, longe dos clichés e extravagâncias de Hollywood. Trata-se de um retrato intímo da vivência diária dos doentes do Hospital Conde de Ferreira, que nos conduz numa viagem pela experiência da doença psiquiátrica, em particular o mundo interior da esquizofrenia, lado a lado com os doentes.
Ao longo deste documentário, temos o privilégio de ouvir os relatos e conhecer através da câmara do realizador a perspectiva de cada individuo sobre a vivência da sua doença, uma experiência pessoal e única, e a percepção sobre as enfermidades dos que o rodeiam, numa atitude de escuta e compreensão que gera uma dinâmica de apoio e solidariedade inestimável.
A incrível capacidade de transmitir a realidade, sem manipulações, onde muitos mitos sucubem à veracidade da lente perspicaz de Jorge Pelicano, torna este documentário uma valiosa referência para a desmistificação da doença mental.
Testemunhamos durante esta obra, a inestimável sabedoria dos doentes, com diálogos de uma profundidade largamente contrastável com as conversas dos dias de hoje, num ritmo calmo e atento, sem pressas nem segundas intenções. Vemos doentes que nos explicam a sua doença e auxiliam os demais residentes do Conde de Ferreira a compreenderem e aceitarem a sua própria aflição, numa atitude de estima e preocupação, longe do estigma implantado na sociedade portuguesa.
Em suma, experiencia-se um sentido de humanidade e empatia naquela que é uma experiência heterógenea.
E temos no centro desta nossa viagem um pintor e poeta da geração de Orpheu, Ângelo de Lima, interpretado pelo actor Miguel, ao torno do qual esta obra se desenvolve. Além de um grande artista, que captou as atenções do movimento modernista e em particular de Fernando Pessoa, temos um ser humano que viveu uma longa porção da sua idade adulta entre hospitais psiquiátricos.
Diagnosticado com esquizofrenia paranóide em tenra idade, cerca de 20 anos, Ângelo foi um dos mais famosos residentes do Hospital Psiquiátrico Conde de Ferreira, e mais tarde do Rilhafoles, posteriormente designado Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, onde viriam a falecer tanto Ângelo como o médico que o acompanhou e apelidou este hospital.
É a minha humilde opinião que o mais impactante soneto de Ângelo de Lima tenha sido o que deu nome a este documentário. Uma construção poética que nos conduz na alucinante jornada do pensamento deste artista e nos faz compreender a frase que o Dr Miguel Bombarda usou para a descrever: “O fundo mental deste doente é de um formidável desequilíbrio”.
“Pára-me de repente o Pensamento...
Como que de repente refreado
Na Douda correria em que levado...
Anda em busca da paz, do esquecimento...
Pára surpreso... escrutador... atento
Como pára... um cavalo alucinado
Ante um abismo... ante seus pés rasgado
Pára... e fica... e demora-se um momento...
Vem trazido na douda correria
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite, escura e fria
Um olhar d’Aço que na noute explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria...
E ele galga... e prossegue... sob a espora”
Se lermos atentamente e nos deixarmos levar por estas palavras, quase conseguimos sentir a aflição do poeta, que perante a alucinante velocidade e descontrolo do seu pensamento, tem um período de breve acalmia rapidamente interrompida pelo continum sofredor do barulho da sua mente. Temos acesso a uma transmissão por via da arte da experiência de Ângelo com a doença que o assolou e que ele nos descreve nesta breve, mas profunda, composição.
É impossível chegar ao fim deste documentário e reter a mesma imagem do doente psiquiátrico que a indústria cinematográfica nos traz. É impossível ficar indiferente ao estigma e ao tratamento diferencial que damos às doenças psiquiátricas, à segregação que fazemos, consciente ou não.
Vemos um hospital isolado da cidade que o alberga, pelas suas altas grades, um remanescente da sua original arquitectura de 1883, mas que ainda hoje é um reflexo da visão comunitária do doente psiquiátrico.
Num país em que 1 em cada 5 portugueses sofre de uma doença de foro psiquiátrico, com a 2ª maior prevalência da União Europeia, torna-se ainda mais urgente desmistificar a doença mental.
O Estigma relacionado com a doença mental resulta maioritariamente do medo do desconhecido e de uma conjugação de falsas crenças e pressupostos, que geram ignorância e potenciam a incompreensão. É um fenómeno complexo profundamente enraizado na sociedade e responsável por atitudes e processos de marginalização e exclusão social. Quando as crenças negativas do estigma público são internalizadas pelo doente surge o auto-estigma, levando a uma perda de auto-estima e auto-desvalorização, que conduzem ao progressivo isolamento social, e que pioram o prognóstico destes doentes. Podemos constatar facilmente a existência dos mais variados estereótipos e conotações negativas atribuídos às afecções psiquiátricas, desde o doente sem sucesso ao doente violento e perigoso, desde o “maluco” ao instável sem cura.
E é aqui que o documentário de Jorge Pelicano poderá ser considerado uma autêntica obra de serviço público, de inegável importância na actualidade.
Uma obra que nos faz questionar o porquê das ideias pré-concebidas, dos estereótipos construídos em torno destes doentes, que nos levam a isolá-los em hospitais que criam o seu próprio “mundo” e se isolam do resto da cidade, que os isolam do mundo. Uma obra que desmistifica grande parte dos mitos e crenças, e contribui para a literacia do comum cidadão, para uma sociedade em que a doença mental não seja um tabu e muito menos uma vergonha ou uma origem de perigo.
A doença mental não existe num universo paralelo ao da doença física, não são duas realidades opostas, e ambas formam o continum necessário à saúde. E para que haja saúde plena é necessário integrar todos os indíviduos, respeitar e não estigmatizar.
Porque afinal de contas... “Aqui não há malucos, há doentes...”.
Maria H. Viegas, 3º ano
Ilustração por Eduarda Costa, 5º Ano