FEIRA SOLIDÁRIA | Liberdade ou morte - Uma viagem pelo Curdistão

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Afinal quem são os Curdos? Ora bem os curdos são um grupo étnico do médio oriente composto por cerca de 30 milhões de indivíduos distribuídos pela Turquia, a Síria, o Iraque, e o Irão. Tem a sua própria língua e religião, e também um forte sentido de identidade cultural que lhes trouxe muitos problemas nos últimos 100 anos. Como os países onde eles habitam não querem perder controlo das zonas curdas, têm recorrido a todo o tipo de meios para esmagar o seu direito à autodeterminação. Deixarei aqui um relato do que este povo tem sofrido ao longo dos anos, e irei também deixar alguns pensamentos sobre o recente movimento de emancipação da mulher curda no norte da Síria. 

A primeira paragem nesta viagem histórica é a Turquia. Aqui habitam mais curdos do que em qualquer outro país do mundo, mas isso não impediu o governo de Ataturk (o primeiro presidente da Turquia) de os tentar exterminar. Em 1937 o exército levou a cabo o Massacre de Dersim fuzilando milhares de homens, mulheres e crianças curdas¹. Uma limpeza étnica ao estilo dos genocídios de arménios e gregos que se deram 20 anos antes.  Mas as perseguições e assassinatos continuaram pelo séc. XX adentro, até que um grupo de curdos formou o PKK (Partido de Trabalhadores do Curdistão) e iniciaram uma rebelião em 1984, exigindo independência e direitos políticos. Este conflito só terminou em 1999 com um cessar fogo unilateral do PKK, desistiram da luta armada para mais autonomia e liberdade politica². Infelizmente em 2015 o ditador turco Erdogan voltou a reatar as hostilidades, por motivos eleitoralistas. Nada como uma guerra sem sentido para gerar união nacional. Convém dizer que esta guerra levou a centenas de milhares de mortos, e imensas vilas curdas foram simplesmente apagadas do mapa.  Foram usados bombardeamentos aéreos, tanques e buldózeres para demolir cidades como aconteceu ao centro histórico de Diyarbakir em 2015³. Foram construídas barragens no Eufrates com o único propósito de inundar as terras ancestrais curdas como vimos em 2020 com a inundação de Hasankeyf uma cidade curda com 12 mil anos de história

Quero também informar o leitor que a língua curda não podia ser ensinada nas escolas e os partidos políticos assim como os jornais curdos eram proibidos. E ainda hoje milhares de jornalistas, artistas, escritores, professores e estudantes universitários estão presos por simplesmente pedirem um cessar fogo nesta guerra contra os curdos. A Human Rights Watch revela como basta um tweet pacifista, para que a justiça turca acuse os cidadãos de propaganda terrorista e os condenar a anos de prisão. A gradual transformação da Turquia numa ditadura não só tem impacto nos culpados dos costume, os curdos,  como afeta já todos os defensores da liberdade de expressão de forma implacável.         

Agora vamos viajar para o Iraque. Toda a gente conhece o terrível ditador Saddam Hussein, mas nos anos 80 ele era o menino bonito dos Estados Unidos da América, porque estava em guerra com o Irão. Nesta altura Saddam queria um Iraque forte, uniforme, e tendencialmente arabizado, então simplesmente decidiu cometer genocídio das minorias não árabes. Durante a infame Campanha Anfal em 1986, usou armas químicas e pelotões de fuzilamento para matar mais de 150 mil civis curdos no norte do Iraque. Quantas crianças ainda nascem nas montanhas Zagros com deficiências terríveis por causa destas hediondas façanhas? É curioso que os americanos tenham continuado a apoiar Saddam Hussein mesmo sabendo destas atrocidades.

 A verdade é que felizmente em 2004 foi criada a região autónoma do Curdistão Iraquiano com capital em Erbil, tendo assim nascido pela primeira vez uma terra onde os curdos podiam chamar casa.    

Na Síria o drama é mais recente, até porque é um país que antes da guerra se orgulhava de ser multi-étnico e multi-religioso. Apesar disso cerca de 300 mil curdos sírios não tinham direito a cidadania. Quando a guerra eclodiu em 2011 as forças do ditador Bashar Al Assad abandonaram o norte do país à sua sorte para irem combater os rebeldes noutras regiões da Síria. Então os curdos organizaram-se democraticamente e criaram uma confederação independente de cidades, a Federação do Norte da Síria. Em 2014, como resposta à barbárie e à misoginia pregada e praticada pelo Estado Islâmico as mulheres curdas criaram as YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) uma brigada composta apenas por mulheres. Estas tornaram-se numa formidável força de intervenção feminista que combate o patriarcado dentro e fora do campo de batalha. A verdade é que no Curdistão Sírio, também conhecido como Rojava, começaram a ser plantadas ideias muito interessantes e únicas na região. Enquanto que os rebeldes sírios se deixaram infiltrar por radicalismos religiosos, e perderam completamente o fio à meada da revolução, em Rojava uma verdadeira revolução feminista e democrática estava a nascer pronta para abalar todos as divisões sociais vigentes até então no médio oriente. Homens e mulheres, curdos, árabes e assírios, muçulmanos e cristãos, todos iriam construir juntos esta nova sociedade. A poligamia tão frequente nas comunidades tribais, foi abolida, assim como o casamento infantil. Todas as vilas e cidades teriam dois governantes um homem e uma mulher. Nas escolas os rapazes e as raparigas teriam aulas sobre feminismo e direitos humanos. No exército, homens e mulheres combateram lado a lado para derrotar completamente o Estado Islâmico¹⁰. Esta interessante experiência social nasceu e sobreviveu rodeada de inimigos, a Turquia, o governo Sírio, e o Estado Islâmico, sempre a ameaçar a sua destruição. Mas infelizmente o ditado popular dita que tudo o que é bom encontrará algum dia a sua finitude, e assim foi. 

A Turquia, velha inimiga da causa curda, nunca iria permitir que Rojava prosperasse ali tão perto, pois temia a exaltação de movimentos nacionalistas curdos dentro das suas fronteiras. Então o ditador Erdogan, não se contentando a matar curdos dentro do seu próprio país, decidiu também matar os curdos na Síria. Em 2016, 2017 e novamente em 2019 o exército turco aliado a mercenários rebeldes islamitas iniciou a invasão e o bombardeamento de Rojava¹¹. Escusado será dizer que morreram milhares de curdos que nunca tinham feito nenhum mal à Turquia, tirando o facto de existirem e serem curdos. Escusado será dizer que os curdos foram expulsos das suas aldeias e que famílias árabes ocupam agora as suas casas. Escusado será dizer que os invasores impuseram a lei islâmica nos territórios conquistados, contrariando todos os progressos sociais alcançados por Rojava¹². Tudo isto faz lembrar a arabização e o genocídio de curdos que o Saddam levou a cabo no Iraque, mas desta vez nós estamos diretamente envolvidos. Porque a Turquia faz parte da NATO, o seu exército é equipado por todos nós, e são essas armas que estão a concretizar a actual limpeza étnica no Norte da Síria¹³ ¹⁴.

Agora que estão apresentados os factos promovo algumas s reflexões. Se os curdos deram a sua vida para que o mundo não tivesse mais de enfrentar o flagelo terrorista, porque é que são os países europeus, que sofreram de atentados terroristas, que fornecem à Turquia as armas para concretizar a sua guerra contra os curdos? Não será um pouco hipócrita e paradoxal dizer que se é contra o terrorismo, mas depois ajudar a matar aqueles que o combatem? Mas se depois acontece um atentado na Europa, a culpa não é nossa, choram-se lágrimas de crocodilo e chamam-se os analistas para analisar a situação, mas ninguém pede que se chamem as grandes empresas de armamento para pararem de vender armas a ditadores. Ninguém liga ao Erdogan para lhe dizer, “olha a tua guerra contra os curdos está a ajudar os terroristas a ganhar terreno podes parar um bocadinho com essa brincadeira”. E se estamos sempre a falar de direitos humanos e igualdade de género porque é que deixamos que Rojava fosse invadida? O único lugar no médio oriente onde há verdadeiramente igualdade entre homens e mulheres. Os curdos não já sofreram o suficiente? Ou ainda tem de ser esfaqueados nas costas com a nossa hipocrisia? 

O sol nasce e renasce e os dias passam no ocidente com o mesmo torpor ignorante de sempre. Que nos importa que os curdos morram em nome da liberdade? Foram notícia um dia, desapareceram, foram esquecidos. O que importa é ir à loja, comprar uma televisão maior para ver tudo com mais detalhe desde que não seja demasiado realista. O que importa é nem sequer votar, ou votar em quem só defende os seus interesses. O que importa é o défice, a dívida, a bolsa de valores sem valores nenhuns e a economia. E depois vamos ser condescendentes a achar que somos salvadores, mas na verdade bastava-nos não ser cúmplices de assassinos, não apertar a mão a ditadores e opressores, não vender a alma a esses diabos. 

Tudo está interligado, um tanque produzido na Alemanha, acaba na Turquia a matar curdos, uma bomba produzida em Espanha, acaba na síria a matar mulheres e crianças, mas tudo está bem para nós e só ficamos tristes quando morre o herói da nossa série na Netflix. Mas os verdadeiros heróis, os verdadeiros ativistas estão a morrer lá longe nas montanhas do Curdistão.

Aquela ilustração lá em cima é uma homenagem às feministas anónimas do YPJ que deram a sua vida pela igualdade e justiça entre homens e mulheres e que morreram ao som do nosso silêncio. Talvez um dia quando a União Europeia começar a espalhar direitos humanos em vez de armamento, talvez nesse dia, a revolução das mulheres do Curdistão seja devidamente reconhecida e aplaudida. Talvez a causa curda deixe de ser constantemente esmagada e oprimida pelo silêncio atroz da comunidade internacional. Pode ser que, quem tenha conseguido ler este artigo até aqui, nos ajude a combater esse silêncio. 

Texto: Ricardo Sá Pereira - 5º ano

Ilustração: Ricardo Sá Pereira - 5º ano

Bibliografia

1- Dersim Massacre, 1937-1938

2-Timeline: PKK conflict with Turkey | News

3- UN report details massive destruction and serious rights violations since July 2015 in southeast Turkey  

4 - Turkey’s Other Weapon Against the Kurds: Water

5-Activist Detained in Turkey for Tweets

6- Introduction : GENOCIDE IN IRAQ: The Anfal Campaign Against the Kurds

7-Group Denial | Repression of Kurdish Political and Cultural Rights in Syria

8-Women. Life. Freedom. Female fighters of Kurdistan

9-The Most Feminist Revolution the World Has Ever Witnessed

10-The women who helped defeat ISIS in Raqqa

11-Turkey's plan for ethnic cleansing in Syria must be stopped

12-We stand in solidarity with Rojava, an example to the world | Letter

13-Turkey confirms use of German tanks in Afrin offensive

14-Kurdish Afrin is democratic and LGBT-friendly. Turkey is crushing it with Britain’s help