LER PARA CRER | O impacto das USFs na saúde dos cidadãos

"Temos uma médica e a médica trata de nós"

Utente da USF Costa do Mar (Costa de Caparica)

Os Cuidados de Saúde Primários (CSP) são a pedra basilar de um Sistema de Saúde. Em Portugal, os CSP passaram por várias reformas ao longo das décadas, visando criar uma estrutura organizacional cada vez mais coesa, com maior capacidade de resposta face às necessidades de saúde da população, garantindo a qualidade dos serviços prestados. As Unidades de Saúde Familiar (USF) são apenas uma parte dessa reforma, mas com um impacto enorme na prevenção e promoção da saúde, funcionando como uma primeira linha de assistência em saúde primária aos cidadãos, garantindo maior acessibilidade, eficiência e qualidade, com o esforço e dedicação dos profissionais de saúde, incentivados ao bom desempenho por um regime retributivo especial que contempla a produtividade.

De uma forma breve e visualmente apelativa, apresentamos uma perspetiva histórica da evolução dos CSP em Portugal:

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Fontes: (1) André N. Unidades de Saúde Familiar: o seu papel na reforma dos cuidados de saúde primários. Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; 2013; (2) Entidade Reguladora de Saúde. Estudo sobre as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, 2016;

As USF são uma das unidades orgânicas que compõem os CSP em Portugal e provaram ter um enorme impacto positivo a vários níveis, tais como, aumento do número de consultas médicas, com maior abrangência de utentes, menor custo operacional, maior efetividade, maior satisfação dos cidadãos, entre outros. O caso particular das USF tipo B é apontado em vários estudos, como a unidade orgânica dos CSP com o melhor ranking em vários indicadores. Assim, decidimos explorar um pouco mais sobre este tipo de unidades (3-5). É importante saber que existem três tipos de USF implementadas em Portugal: tipo A, tipo B e tipo C (ver tabela abaixo).

Modelos de USF – A | B | C

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Fonte: (6) Ministério da Saúde. Despacho nº 24101/2007. Diário da República; 2007 p. 30419.

Desde 2006 que o número de USF tem vindo a crescer, sendo que em 2019 contabilizou-se um total de 553 USF em atividade (299 tipo A e 254 tipo B)

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Figura 1 - Número de USF de modelo A e de modelo B que iniciaram atividade anualmente entre 2006 e 2019.

Fonte: (5) USF-AN. O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2017/2018

Os números que justificam a implementação das USF

Foram vários os estudos realizados ao longo dos anos no âmbito do CSP e selecionamos alguns que se debruçam essencialmente sobre os centros de saúde, as UCSP e as USF (tipo A e tipo B). Destacamos três estudos que foram realizados entre os anos de 2005 e 2015, no âmbito da satisfação dos cidadãos com os CSP, tendo em conta a metodologia “Europep”. Obtiveram-se resultados francamente positivos, com um aumento percentual da satisfação dos cidadãos de 22,6%, em 10 anos (ver tabela em baixo) (3).

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Fonte: (3) USF-AN - Associação Nacional Unidades de Saúde Familiar. A nova organização nos cuidados de saúde primários, os seus resultados e o futuro

Em 2018, num estudo realizado pela Coordenação para a Reforma dos CSP, ficou demonstrado que as USF B têm mais ganhos em saúde imediatos e a médio/longo prazo e também são as mais eficientes, com um custo global inferior em 352.832 €, comparando com outros tipos de unidades de saúde. Tendo em conta este pressuposto e a avaliação do impacto do modelo organizacional, foi realizada uma previsão dos custos e consequências desse panorama, caso todas as UCSP fossem USF do tipo B (3-5)). Aqui estão alguns pontos que selecionámos:

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Fonte: (3) USF-AN - Associação Nacional Unidades de Saúde Familiar. A nova organização nos cuidados de saúde primários, os seus resultados e o futuro

Segundo este estudo, se tivesse sido aplicada uma reforma nos CSP, em que todas as UCSP se tornassem USF do tipo B, haveria uma franca melhoria dos resultados em saúde em todos os indicadores e uma redução significativa dos custos globais, apesar do aumento do custo com os recursos humanos, gerando uma poupança de 103.611.995€ em 2015 (4).

Tendo em conta todos os dados recolhidos, é seguro afirmar que com a criação das USF foi possível oferecer aos cidadãos um serviço de saúde com mais eficiência, maior acessibilidade, maior satisfação dos cidadãos e ao mesmo tempo um ambiente de trabalho mais atrativo e cooperante, garantindo assim uma maior qualidade dos serviços de saúde. No entanto, existem oportunidades de melhoria a considerar e a continuidade do sucesso das USF está intimamente dependente da continuidade do interesse, tanto das entidades governamentais como dos profissionais de saúde (5,7).

USF Costa do Mar

o exemplo prático da implementação de uma USF tipo B

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A RESSONÂNCIA selecionou a USF Costa do Mar, na Costa de Caparica, como um exemplo prático da implementação de uma unidade tipo B, onde estivemos à conversa com representantes de todos os grupos profissionais.

Esta unidade de saúde é recente (implementada a 15/05/2015) e surgiu do desejo de um grupo de Internos da especialidade de Medicina Geral e Familiar em contribuir para a melhoria dos cuidados de saúde de uma população carenciada, aliando à possibilidade de liderança e autonomia que a USF tipo B permite.

A USF Costa do Mar conta com uma equipa médica composta por 10 médicos, 10 enfermeiros e 6 secretários clínicos, estando a Coordenação a cargo da Dr.ª Joana Neves Pereira, especialista em Medicina Geral e Familiar. Aqui fica um excerto desta entrevista:

Entrevista - USF Costa do Mar

Profissionais entrevistados:

Dr.ª Joana Pereira (Coordenadora da USF e Especialista em MGF)

Dr.ª Ana Ferreira (Co-coordenadora da USF e Especialista em MGF)

Dr.ª Madalena Gonçalves (primeira Coordenadora da USF e Especialista em MGF)

Enf.ª Isabel Alexandre (Enfermeira em funções de chefia e especialista em Saúde Infantil)

Secretária Clínica (SC) Alexandra Macedo 

RESSONÂNCIA: O que motivou a criação da USF Costa do Mar?

Dr.ª Madalena: Enquanto interna do 4º ano na USF da Cova da Piedade, ao acompanhar consultas sem médico, fiquei sensibilizada com a falta de médicos. Senti que era tempo de fazer a diferença numa população carenciada, queria fazer algo diferente e que me desse oportunidade de exercer alguma liderança com autonomia. Juntei alguns colegas de internato e decidimos realizar o projeto de implementação de uma USF, com a ajuda dos nossos formadores de internato.

RESSONÂNCIA: Durante o processo de criação da USF, quais os pontos que considera mais importantes e cruciais para obter a autorização? Quais foram os mais desafiantes?

Dr.ª Madalena:  A criação de uma USF deve ter em conta a sua área de influência e a existência de população carenciada ou utentes sem médico de família. Deve ser elaborado um plano de ação para a implementação da USF, com o apoio e conselho clínico da Direção do ACES correspondente, sendo que considero este item um ponto fulcral para a criação de uma USF. Um dos pontos mais desafiantes foi a cativação e seleção de profissionais de saúde para integrar a nova USF e criar uma motivação suficiente para que o projeto fosse abraçado por todos.

RESSONÂNCIA: Como foi criada a equipa original da USF? Ainda se mantém?

Dr.ª Joana e Dr.ª Ana: Para a criação de uma USF pressupõe-se a escolha dos elementos da equipa. Através de um cálculo foi encontrado o número de profissionais de saúde que deveriam ser afetos à USF Costa do Mar e através de contactos diretos com colegas de internato, foi possível compor a equipa médica. Para a equipa de enfermagem, manteve-se a maior parte dos elementos que trabalhavam na unidade de saúde anterior à USF.

A equipa atual não conta com alguns elementos originalmente escolhidos, porque estes decidiram integrar outros projetos. Os profissionais substituídos foram escolhidos por voto secreto em reunião de conselho geral da USF com pelo menos dois terços dos profissionais. Nos casos em que exista mobilidade de profissionais de e para outras unidades de saúde, a mesma é aprovada por ambas as unidades ou por rescisão de contrato com o profissional.

RESSONÂNCIA: Qual o impacto que a criação da USF Costa do Mar trouxe para a saúde da população da Costa da Caparica?

Dr.ª Joana e Dr.ª Ana:  Embora ainda não existam dados de saúde objetivos, claramente há uma maior acessibilidade à saúde para uma população que era carenciada. No entanto, devido a limites do número de inscritos nas listas de utentes, algumas pessoas ficam desprotegidas. Denotou-se um aumento do número de diagnóstico em determinadas patologias, nomeadamente: cancro da mama, patologia cardiovascular e respiratória, HIV e toxicodependência.

É percetível o passa-a-palavra entre a população, para recorrer aos médicos da USF Costa do Mar.

RESSONÂNCIA: Quais são as perspetivas futuras para a USF Costa do Mar?

Dr.ª Joana e Dr.ª Ana:  a curto prazo: garantir a aplicação prática da homologação em Diário da República da USF Costa do Mar como modelo B; manter a estabilidade da equipa, o que poderá levar a um aumento da performance e uma melhoria de indicadores.

A médio prazo (5 anos): garantir a acreditação da USF, com principal enfoque no reforço do trabalho em equipa, com uma vertente comunitária forte e manter a avaliação dos processos de trabalho com a aplicação de consequentes oportunidades de melhoria.

RESSONÂNCIA: Quais são as mais valias de existir um Enfermeiro de Família na USF?

Enf. ª Isabel: O Enfermeiro de família promove a capacitação da família maximizando o seu potencial de saúde, ajudando todos os seus elementos a serem proactivos no tratamento e manutenção da saúde, nomeadamente:

 a) Desenvolvendo o processo de cuidados em colaboração com a família e estimulando a participação significativa dos seus membros em todas as fases do processo;

 b) Focalizando -se na família como um todo e nos seus membros individualmente e prestando cuidados nas diferentes fases da vida da família;

c) Avaliando e promovendo as intervenções que se mostrem mais adequadas a promover e a facilitar as mudanças no funcionamento familiar, de acordo com as decisões estabelecidas no âmbito da coordenação da equipa multiprofissional.

RESSONÂNCIA: Quais os principais desafios que o Secretário Clínico (SC) enfrenta no seu dia-a-dia?

SC Alexandra: As atividades desempenhadas pelo SC que apresentam maiores desafios, são: a  gestão de reclamações apresentadas pelos utentes; o agendamento de consultas, que por vezes possuem um tempo de espera de algumas semanas e que nem sempre é bem entendido pelos utentes; o atendimento telefónico, que carece de concentração e disponibilidade, e muitas vezes os utentes dirigem-se ao balcão, interrompendo as chamadas; a carência de equipamentos informáticos (impressoras); e  a gestão de conflitos, devido a utentes descontentes.

RESSONÂNCIA: Quais as ferramentas de comunicação existentes na USF Costa do Mar, para que a informação seja veiculada em tempo útil e eficazmente por todos os grupos profissionais?

Para além dos equipamentos de trabalho existentes (telefones, computadores), existem softwares dedicados à comunicação interna e que permitem, em tempo real de consulta, comunicar com os diversos profissionais.

São realizadas reuniões semanais, com todos os elementos ou representantes dos grupos profissionais da USF, onde são debatidos os temas atuais que necessitam de reflexão e onde são transmitidas informações essenciais para o bom desempenho da equipa.

Existe também um placard onde são afixadas informações de forma periódica e que podem ser consultas por todos os profissionais no espaço social.

O ponto de vista do aluno estagiário de Medicina…

A USF Costa do Mar possui uma equipa médica jovem, dinâmica e com um espírito de equipa forte. Enquanto aluno, fui integrado facilmente na equipa, onde me foi dada a oportunidade de participar em todas as atividades do dia-a-dia de um Especialista em Medicina Geral e Familiar. Assisti a consultas abertas e programadas de adultos, doentes crónicos (diabéticos, hipertensos), Saúde Infantil, Saúde Materna e Saúde da Mulher, para além de ter acompanhado vários domicílios. Foi-me permitido também assistir a vários atos de enfermagem (curativos, vacinas, administração de fármacos) e a várias reuniões gerais da USF, o que me permitiu ver o papel do MGF para além da intervenção médica e perceber um pouco melhor a dinâmica de uma USF tipo B.

Apesar da minha experiência em unidades de saúde ser limitada e meramente académica, considero a USF Costa do Mar uma unidade exemplo do que é a USF tipo B…e aguçou o meu desejo em tornar-me Médico de Família.

Texto: Carlos Daniel Santos - 6º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

 

Referências Bibliográficas:

1.          André N. Unidades de Saúde Familiar: o seu papel na reforma dos cuidados de saúde primários. Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra; 2013.

2.          Entidade Reguladora de Saúde. Estudo sobre as Unidades de Saúde Familiar e as Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados. 2016. Disponível em https://www.ers.pt/uploads/writer_file/document/1793/ERS_-_Estudo_USF_e_UCSP_-_final__v.2_.pdf

3.          USF-AN - Associação Nacional Unidades de Saúde Familiar. A nova organização nos cuidados de saúde primários, os seus resultados e o futuro. [Internet] Disponível em https://www.usf-an.pt/artigos-de-opiniao/a-nova-organizacao-nos-cuidados-de-saude-primarios-os-seus-resultados-e-o-futuro/

4.          Nunes C, Oliveira M. Avaliação de custos-consequências das USF B e UCSP. 2018 [Internet]. Disponível em https://www.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2018/02/CNCSP-Avalia%C3%A7%C3%A3o_USF-1.pdf

5.          USF-AN. O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2017/2018 [Internet]. Lisboa; 2018. Disponível em: https://app.box.com/s/py3xim1f7g1018oih0q4icgcfhqzkgp4

6.          Ministério da Saúde. Despacho no24101/2007. Diário da República, 2a série, n.o 203 Portugal; 2007 p. 30419.

7.          Lerberghe W, Evans T, Rasanathan K, Mechbal A, Mertens T, Evans D, et al. Primary Health Care, now more than ever. The World Health Report 2008. 2008.