ÂNSIA CRÓNICA | Hoje vou morrer

Foto de Marcos Paulo Prado.png

Hoje vou morrer. Pelo menos era o que dizia a carta violeta, há uma semana atrás, assinada por ela, que ia morrer dali passados oito dias (se bem que isso significaria que morreria amanhã, mas tenho aprendido que a morte não tem boas relações com a Matemática).

Na realidade, talvez até já tenha morrido, durante o sono, de madrugada, e esteja já a experienciar o que quer que seja que há depois de morrer. Ou então estou a desperdiçar o meu último dia a pensar sobre isso.

Como será que vou morrer? Se ficar em casa, será que simplesmente bato com a cabeça ou dá-me um enfarte? Se sair, tropeço nas escadas, passa-me um carro por cima, ou sou apanhado de surpresa no meio de um tiroteio clandestino numa rua duvidosa? Talvez morra em frente ao meu querido caderno, no meu querido café, a meio de uma frase importante, para que depois leiam (quando morrer, o que escrevi vai ser muito mais interessante) e fiquem com a frustração de pensar o que seria que eu ia escrever, quais seriam as minhas últimas palavras, não tivesse vindo a senhora feita de ossos levar-me com ela. 

As últimas palavras de uma pessoa são, na realidade, algo bastante irrelevante. Se todos pudéssemos escolher as nossas, estaríamos repletos de clichês baratos e facilmente replicáveis. A mágica é precisamente não saber quais elas serão, se uma despedida, se uma anedota, se uma preposição sem seguimento, se uma pergunta sem resposta… as mais memoráveis são as que não nos lembramos bem, que provavelmente terão sido simplesmente “Até amanhã, netinha”, ou uma história a contar, uma refeição a planear, que ficou a meio. Mas não é assim que faz sentido? Como uma vez li, morre-se a meio de uma frase, morre-se a meio da vida, morre-se e pronto.

Portanto, hoje vou morrer. Não contei a ninguém, porque não achei necessário ter de planear despedidas e palavras que fiquem bem dizer, se bem que compreendo que daqui por uns anos se torne banal saber-se com certeza que o nosso amigo vai morrer (hoje também temos essa certeza, mas a incerteza do quando atenua-a). Deixo que seja o meu segredo com o carteiro.

Decido não sair de casa e nem me levantar da cadeira. Ao menos vou confortável. Ao menos deixo-lhes umas

Texto: Raquel Moreira - 3º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano