Português de Café
Ó Português! Quem és tu afinal quando, cansado da lida natural de viver (o trabalho vital, a vida laboral) te sentas naquela mesmíssima cadeira, apoias rudemente os cotovelos naquela tão mesma mesa e entregas toda a tua mente à solidão do silêncio, no café barrulhento, bafiento (entre outros “-entos”) da esquina?
Ó Português! Que importa se és do Douro, da Beira, do Interior ou do Gerês? Que importa se vens daquele Norte formigueiro ou daquele Sul cigarreiro? És um português num café. Por isso, és tão somente, no momento e para sempre, um português de café.
«– Sai um café!», ou uma bica, ou um cafezinho, ou um cimbalino ou que for…tanto faz. Ai, e faz tanto…
Suspira, ó português. Tira o teu chapéu, ou boina, ou boné, e sacode-me esse suor da testa. «– Atesta!» Se é bagaço com o cimbalino, atesta!
E bebes um, depois outro. Limpas a boca com as costas da mão que as maneiras europeias tu não nas conheces, contentas-te tu só por não te doerem tanto essas costas como as que carregas atrás do coração, um pouco à esquerda. Se não souberes onde elas ficam, essas que te doem, devido ao trabalho do qual (quase) fazes vida, mas, (a)note-se, só porque dele, ela (e tu, meu bom paspalho!) dependem, não tem mal. Acabarás por encontrar o caminho. Perguntar é que não!
Ó Português! Esse orgulho de fidalgo burguês, em bolso de pobre pedinte! Quem és tu no final, afinal?
Isso… Isso é que é… Sabes lá tu, não é? Ó Português!
Esse coração de granito não é forte o suficiente para encarar aquele chamar impertinente do mar pela gente e resistir. Entregas-te a ti, e ao ser, e à alma, e vais.
Para onde, Português?
Ó Português, para onde o teu Deus quiser, para o desconhecido, qual bandido; e, no final, ris-te, rodeado de ninfas, do Adamastor choramingas, sob o pó e a canela das Índias, ao sol daquela Ilha dos Amores.
Ai amores, Português! O que eles te fazem ao pobre coração latino, que late, bate, ó Português, que desatino! Olhas a puta da vida, na esquina, perna nua alçada, salto alto na calçada, na vida. E o teu coração dispara. E apertas o bolso vazio. Fica para outra vez, Português! Valham-te agora, ao menos, os olhos que Deus te deu e deixa o sangue correr e a saliva, na boca, aparecer.
Sabor a salina, a mar…
«– Venha uma loira!», a da esquina, bem ia, mas esta é mais barata!
Ó Português! Mergulhas já o teu ser no mar, no amor e no álcool bento, que é esse o Fado, e o teu Fado é desse. «– Canta, Fadista!» Como ela canta… Como tu fechas os olhos para ouvir a Saudade, o som do repique das ondas e o chamar de um coração lusitano, e todo o teu ser de granito se envolve em si mesmo na sua firme fragilidade ocidental, acidental. E a tua boca fecha para fazer tudo descer ao longo da chaminé do ser, tudo embebido no teu último gole da noite.
Encher-te-á, agora, o fumo do cigarro que tiras do bolso e acendes com um fósforo.
Olhas em redor e, ó Português, só vês espelhos. E tens a sorte de não ser dia de futebol! Ó Português! Nem tu, nem o Café, nem os espelhos resistem à bola roliça no campo ao som dos gritos de cortiça que nunca passarão das redondezas da esquina. Futebol e Fado, triste Fado, digo-te, Português! Tu que vives apoiado nesses teus belos vícios fáceis… E é tão fácil levar-te! E tão difícil convencer-te! Não te entendo, ó Português! Acho que nem tu te entendes. «– No tempo de Salazar é que era!» Não havia gatunos como agora… Era tudo gente séria, graças a Deus!... A Deus, à Pátria e à Família!
A família está em casa…
A Deus tiras o chapéu a cada Trindade que (re)ssoa…
A Pátria… Sabes lá onde está! A última vez que a viste estava na Guiné a sangrar. « –Filho da puta, Salazar!» Grande ladrão… Pim!
Ó Português! E agora? O fio condutor da coerência que te seduz é o que tu usas para te enforcares! Quem és tu, que não gostas que mandem em ti, mas que em ti não sabes mandar?
Ó Português, raios partam! Pim! Pim, Heia!, exortariam os grandes. Mão na algibeira, recostado na cadeira, poesia no sangue, sombra da musa no colo, olho na puta, orgulho firme.
O Café fecha tarde. Tu, ó Português, nunca fechas, findas ou acabas. Continuas forte, altivo, constante, que a vida é pesada, a alma carregada, e esta prosa, boa ou má, findada!
Julho de 2017
/rascunho de noite/
Cai o pano. Termina a peça. Os atores abandonam o palco.
A noite cai. E dói. Talvez porque cai, ou tão só porque corrói. Corrói porque enche de vazio o que vácuo é já.
E eles escrevem sobre a noite, de dia, achando-a clara. Querem vê-la, lavá-la de seu breu, despi-la das fúnebres vestes. Não é amículo, é derradeira pele, verdadeira na sua mentira negra, esta que se faz clara aos olhos que a querem ver. Não veem. Nem eu, que a ela regresso sempre, a vejo. Porque cada perceção é nocicepção mera.
O teatro fecha, termina a peça. Acho que finda também a vida. Infinitas vezes a vi findar. Outras tantas vim aqui parar, ao jugo da noite. Subjugada pelo seu encanto de ponte entre a vi(n)da que finda e a que a contém, a que anseia por findar a cada noite destas. Os que me viram no eu não sou, saem, repletos de si, dizem que são ora mais, porque beberam de mim o que eu não tive, tenho ou terei alguma vez. Comentam. Comentam-me. Comem e mentem. Comem-me e mentem-me. Justa cadeia circular, que eu menti-lhes primeiro, vendi-lhes um ser que não era e, nua, cedi-lhes o cetim de um prazer que não tinha. Caleidoscópio noturno prende o ser soturno que em mim habita. Os círculos sucedem-se (“Por favor, sosseguem!”) numa rosácea interminável, que mina a cada mentira, a cada peça que finda, a cada pano que cai.
Porque quando o pano cai, caio eu.
Apaga-se a luz, põe-se o sol. Cai a noite e eu caio nela, com ela. Caímos na cama de si mesma, aconchegamo-nos ao seu lençol celeste, bordado de estrelas e histórias, que nem lençol é, que é pu(lc)ra quimera. Cobertos de breu e de brilho. Cintilam os nossos olhos, postos nos nossos sonhos mortos, poisados connosco neste esquife em que descansamos, berço funesto.
Embriagados espíritos noturnos cobrem as esquinas que dobro. Almas seguras escorregam de corpos que se seguram num só pé. Mas não porque são bailarinas de porcelana em ricas caixas de música. Estes pés têm calos e não se aguentam senão na ponta do abismo que é a feira ambulante em que vendem. Os corpos. Em que se vendem.
As almas escorregam, misturam-se na calçada, dissolvem-se na chuva calada. E nas lágrimas dos que deambulam ainda. Que esta é a hora das odes aos males do mundo. Esta é a hora dos fartos dos fados. Que fardos! E como escapar? Como fugir se numa taberna aberta se ouvem cantar saudades?
O som evapora, dança no ar. No chão dançam baratas e ratos. Dançam vermes também, vermes da vida, germes pensantes. Esses nem pensam. Bebem só este ar frio que é o assobio da irmã da morte. Este ar. (D)a noite. Açoite: este ar respira-se como um açoite. E doí. A noite dói. Talvez porque cai.
E caiu.
Agosto de 2018
/rascunho de um suicídio/
(os atores aprontam-se para o último ato. Uma sala, decorada apenas com um piano e respetivo banco. O dia está já ‘in media res’.)
Um ângulo reto, entre a parede e o teto. Um perfeito ângulo, severo da sua perfeição. Belo. Branco. Vazio, como a vida como que vazia dela. Vazio, como o revólver que dia de um ramo dela. Daquela árvore cujos únicos frutos tinham secado antes da colheita. Sobrou um, bonito, macio. Rosado. Condenado, num futuro mal-amado.
Era Verão. A janela não mentia quando, cúmplice inerte, vigiava o calor da rua deserta no frio da sala erma. Ou seria o contrário? Do crime, era igualmente culpada: um pedaço de sol, uma mancha de luz, derramada sobre o chão nu da sala, no suporte despido da alma descalça. Daquela árvore.
Era Verão. Mas no ar o hino era o da Primavera. Vivaldi abraçava o ar gelado do espaço que se erguia a indecisão caótica do vazio entre as seis paredes da sala. E eram pés, os que calcavam o chão. Da sala. Eram raízes, as que não conseguiam sustentar o peso da alma que sobre elas se erguia, em ruínas. Na sala. Que raízes, se não são capazes de sustento?
Piano saía o som do piano. Estava sentado à sua frente um pequeno pêssego. Rosado. Macia criatura, tocava as teclas, as notas, os seres. Que seres? Na sala, que seres? Havia um fruto, meramente rebento, ainda ornado das flores virginais que são a cegueira encantada da inocência infantil. Toca, toca, querubim. Que as aves do “c(/C)éu” seguem teu compasso. E as árvores da Terra… Aquela árvore, em ruínas na sala, estava morta, envelhecida pelo vento que a fustigou. O vento inconstante castigador das almas, que num ato de criação divina lhes são condenadas. O vento, como no inferno. E a vida.
Era Verão. O ar iniciou-se, inexoravelmente, na mentira. Os pés aqueciam, morbidamente enregelados. Era o sol, que caminhava no seu arrefecimento para poente. Os pés da árvore morta, o sustento da alma findada, finada: o esqueleto, a máscara que os culpados, tal bonecos num teatro, envergam. Culpados do crime de nascer humanos. Demasiado humanos. Humanos demais para viver a desumanização da vida, entregam-se à existência carnal, que a carne é parasita sádica da árvore sob ela perecida. Tão pouco parecida. Já não poisam nela os pássaros e já não dormem lá as gentes. Agentes fatais da vida da árvore, repoisam agora entre o adubo da terra. Desterrada de si. Era isso. É. Isso. Que se é. Que ela era.
Tic. Tac. Tic… Dois relógios marcavam o compasso. Do piano. Da música. Da vida, toda ela musical, tragédia grega, ou funeral. E a sala, lá estava, nua. E nem tinha uma porta. Como se entra numa sala sem porta? E como se sai? A luz alaranjada revelava um piano, tocado pelo um fruto intocado da árvore. Rosado. Todo menina, de rosa vestida, de vestido. E uma mulher. Ela. Morta. Ou talvez apenas demasiado viva, por fora, para suster a podridão convulsa, por dentro. Vestida também de vestido, alvo, como o Céu (onde dormem os pecadores) estava ela, nua. Como a sala. Como a rua. Segurava na mão esquerda um revólver. Era o do avô. A vida passara por ela, para aquela cujo toque alado a arma lhe prometia. O seu olhar era gelado, como o era o seu coração, que bombeava uma força que não era já de vida. Bombeava a tortura de mais um dia, uma hora, um segundo; até que cada inspiração de tornou uma prisão. Três balas rolaram para o revólver.
- Um revólver, pensava, era a arma perfeita. Rodava, desenhava círculos sobre si mesmo. Círculos. Tão perfeitos. Tão dilacerantes quando vividos. «Porque não se fazem algemas quadradas?» Os círculos e a sua completude… O que começou, será acabado. O revólver rolou do ramo esquerdo para o direito.
Rodou. O revólver. E a saia do seu vestido, numa valsa outonal, fatal (que bem poderia ser fetal). Uma senhora a acompanhava, malévola na sua obscura bondade, e era de ébano a sua presença, leve. «Leve-me. Senhora de negro que ceifas os campos da Terra, vinde.» Premiu o gatilho. E beijou-a, num beijo pestilento de prazer pacífico.
Um relógio parou: 18:04. E choveram pétalas rubras, que pintaram as paredes de vida, de sangue, que é a tinta com que a senhora de negro pinta os corrompidos lábios seus. Aqueles que são os autores (serão artistas?) do cínico final. Nas veias do arcaboiço caído, a paz substitui o sangue, que o adubo da terra é mais venturoso que os homens. E a Humanidade é tão grandiosamente restolho como os cadáveres que decoram os cemitérios, para sacrilégio da vida, cativeiro dos mortos, e masturbação dos vivos.
Era Verão. Mas o frio das suas mãos em breve anunciariam o Inverno que começara afazer-se ouvir, no ar ermo. Como a sala. Como alma. E o crânio. Dela. E a outra? Bela flor, doce fruto não parou nunca de tocar, e tocaria até ao fim, que é ilusão, embora os seus dedos infantis roçassem por vezes as escarlates pétalas, que por sobre as teclas repousaram. Não deitou nenhuma lágrima. A sua respiração manteve-se sempre constante, firme, embora inspirasse agora um odor imundo, do mundo. A árvore estava morta. A máscara, o esqueleto, morrera agora também. Restava-lhe o restolho e o silêncio, quando, como a vida de quem lhe tinha a vida dado, terminou a peça e o piano parou. Finda-se o ano. A última estação chega ao seu final, que é, talvez, o seu começo.
Tac… Parou o outro relógio: 18:12.
Leve, tal anjo, a criança levantou-se do seu banco. A sala, como a vida, não tinha porta de saída. A saída, como a entrada, era cara. Na sua ridicularia petiza, pensou que talvez a pedisse a para o próximo Natal. Afinal, portava-se sempre tão bem. E deitou-se. Deitou-se no chão, com a cabeça pousada no cadavérico regaço da mãe, cobriu-se de uma réstia de sol e de sangue e deixou-se embalar pelo cantar maternal da dona de negro, abraçada à perfeição do revólver. E do fim.
(cai o pano)
Autor: Ana Fagundes -1°ano
Ilustração: Felipe Bezerra - 3°ano