COMENTÁRIO
“A saúde constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político, condição económica ou social”. Este é o ponto de partida para uma discussão que, atentando na realidade portuguesa, conclui que o SNS tem qualidade, universalidade, equidade e solidariedade no acesso a cuidados de saúde.
Um ano volvido e numa atualidade pandémica que já não esconde a deficitária economia as autoridades políticas estão mais atentas à importância colossal de um SNS bem financiado para dar resposta eficaz às necessidades da sociedade. Porém, e num tempo de saturação das fileiras públicas, a cooperação com o setor privado adquire destaque neste debate de longa data. A própria Lei de Bases da Saúde refere que “de forma supletiva e temporária podem ser celebrados acordos com entidades privadas...” e, este ano, o governo aprovou o alargamento da ADSE.
Estarão estas medidas a folgar “a joia da coroa portuguesa" para termos um Sistema de Saúde robusto ou é este o princípio do fim da saúde equitativa, justa e solidária...
GRANDE REPORTAGEM | Público ou Privado: Qual a melhor solução para um sistema de saúde para todos?
Em 1946, foi aprovada a Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), na qual podemos ler: Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição económica ou social. Tanto o Banco Mundial como a OMS designaram a cobertura universal de saúde como um objetivo primário.
Atualmente, a discussão no panorama político português tem sido marcada por diversas propostas antagónicas de remodelação da Lei de Bases da Saúde, legislação que estabelece o quadro do sistema nacional de saúde e, particularmente, do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Contudo, o debate rapidamente cedeu a simplificações e dicotomias, nomeadamente a do público vs. privado. Surge na opinião pública a perceção de que estamos perante uma bifurcação e que só podemos tomar um de dois caminhos.
DIFERENTES SABORES DE SISTEMAS DE SAÚDE
O que é um sistema de saúde? Genericamente, corresponde ao conjunto das organizações que prestam serviços médicos (hospitais, centros de saúde, etc.) e que providenciam o seu financiamento (governos, comunidades locais, companhias privadas de seguros, etc.). Dada a sua enorme variedade, os sistemas de saúde podem ser agrupados de várias formas:
1) Modelo Beveridge – baseado num serviço nacional de saúde, de acesso universal, providenciado e financiado pelo governo através do Orçamento de Estado; não exclui a existência de prestadores de saúde privados, que podem ou não receber financiamento estatal (ex.: Portugal, Reino Unido, países escandinavos, Espanha, Nova Zelândia, etc.);
2) Modelo Bismarck – baseado na segurança social, nomeadamente através de seguros obrigatórios (que revertem para “fundos de doença”, que qualquer contribuinte usa com base nas suas necessidades); o Estado vigia um sistema de contratos entre utentes, fornecedores de serviços e seguradoras (ex.: Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Japão e Suíça);
3) Modelo nacional de seguro de saúde – inclui elementos dos anteriores: os prestadores de cuidados são privados, mas o financiamento vem de um programa de seguro gerido pelo Estado, para o qual todos contribuem; não há objetivos lucrativos nos seguros (ex.: Canadá, Taiwan, Coreia do Sul, etc.).
4) Modelo out-of-pocket – não há um sistema de garantia de acesso universal a cuidados de saúde, sendo estes pagos diretamente pelos utentes; apresenta tendencialmente maus outcomes e é característico dos países em desenvolvimento (ex: África, Índia, China, América do Sul, etc.)
5) Modelo Semashko – diretamente controlado pelo Estado, que é proprietário de todas as infraestruturas, financiador de todos os procedimentos e alocador dos serviços à população (ex.: Rússia, Bulgária, Polónia, República Checa, etc.) Relativamente à natureza do financiamento dos sistemas de saúde, encontramos uma panóplia de métodos que inclui fundos governamentais, seguros de saúde ou sociais obrigatórios (financiados de forma pública, privada ou ambas), seguros de saúde voluntários (privados), fundos pessoais, ONGs e até corporações. No geral, cada país aplica vários destes métodos, diferindo na sua dominância relativa.
E EM PORTUGAL?
Segundo o relatório Health Systems in Transition, em 2010, a tendência de crescimento dos gastos públicos, que se verificava desde os anos 90, inverteu-se e deu lugar a um aumento da despesa privada.
Em 2014, o setor público contribuía para 66,2% dos gastos em saúde (menor que a média europeia: 76,2%), e o setor privado para os restantes 33,8%, dos quais 5,4% provinha de seguradoras e 27,5% de gastos out-of-pocket (taxas e co-pagamentos cobertos diretamente pelos utentes em produtos farmacêuticos, exames laboratoriais e imagiológicos ou, controversamente, taxas moderadoras) - este último está entre os mais altos a nível europeu e constitui um grave fator de inequidade.
No geral, o SNS oferece cuidados universais e compreensivos aos cidadãos e contratos com privados permitem ao SNS, como financiador, alcançar as necessidades dos utentes em testes laboratoriais, imagiologia, diálise e reabilitação. No entanto, os tempos de espera elevados permanecem um problema major, com impacto no acesso, equidade e proteção financeira (os utentes procuram no setor privado respostas que não alcançam no SNS), e poderão constituir a explicação para a magnitude de pagamentos sob a forma de gastos out-of-pocket. Recentemente, estes e os do setor privado têm aumentado, apesar da oferta de serviços no SNS não ter diminuído, o que sugere que cidadãos com maiores rendimentos se têm virado para os cuidados privados devido à insatisfação com o SNS.
OS CAMINHOS ADIANTE
Segundo o relatório Um Futuro para a Saúde, da Fundação Calouste Gulbenkian, o SNS é financiado de três formas principais:
1) receita de impostos;
2) co-pagamentos e taxas pagas pelos utentes;
3) subsistemas e sistemas privados de seguros de saúde.
Segundo o relatório, há um consenso geral na população a favor da manutenção do financiamento do SNS pelos impostos, e da sua acessibilidade de forma equitativa e universal. A adoção de um sistema totalmente privado teria benefícios incertos e uma implementação excessivamente dispendiosa. A margem para aumentar os impostos gerais é reduzida, pelo que se sugere aumentar os impostos sobre os produtos pouco saudáveis e criar incentivos para comportamentos saudáveis. Quanto aos co-pagamentos, reconhecem-se as suas desvantagens: evidências indicam que reduzem a utilização dos cuidados de saúde, tanto os inadequados como os necessários, tendo um efeito negativo sobre os mais desfavorecidos. Além disto, quando elevados, requerem isenções para os grupos mais vulneráveis e levam os utentes com mais meios a optar por um seguro privado. Dada a sua natureza regressiva (ignoram os rendimentos do pagador), implicam um maior risco de famílias e cidadãos com menores rendimentos se confrontarem com custos incomportáveis.
Os subsistemas de saúde (sendo o maior a ADSE, subsistema voluntário e pago, para funcionários públicos e os seus familiares) têm como principal vantagem a possibilidade de recorrer diretamente ao setor privado pagando uma reduzida quantia, sem aprovação prévia do subsistema. Isto resulta em maior utilização de recursos ao invés de melhor qualidade dos mesmos. Pela sua natureza, os subsistemas apenas estão ao alcance de pessoas com garantia de emprego, deixando tendencialmente de parte os mais idosos e os mais pobres, que comportam os maiores problemas de saúde e poderão não ter emprego. Dada a sua condição, também não conseguem comportar os planos de seguros privados, apenas disponíveis para quem tenha meios suficientes. Desta forma, o alargamento da ADSE é frequentemente apontado como potencialmente adverso para a sua sustentabilidade.
Quanto ao setor privado, a concorrência pode melhorar a qualidade e os tempos de espera nos serviços, desde que cumpridos uma série de pré-requisitos respeitantes à liberdade e informação do consumidor e à regulação do setor, apesar de se levantarem questões acerca da continuidade de cuidados e colaboração entre prestadores. Em 2010, a OMS recomendou a Portugal que se esclarecesse e regulamentasse o papel do setor privado “através de um enquadramento político coerente”. O relatório da Gulbenkian sugere, assim, a adoção de uma abordagem pragmática, fazendo participar este setor, com fins lucrativos e não lucrativos, na sua missão de proporcionar serviços de qualidade, exigindo transparência e respeito pelos mesmos valores que o setor público. Na base desta iniciativa estará a criação de um Acordo Público-Privado que defina esse quadro legal, visando o benefício da população e dos doentes e não apenas do setor privado.
Finalmente, o relatório adverte contra alguns pontos fulcrais:
• O fenómeno de “procura motivada pela oferta” – criar novos serviços aumentará a procura, sejam necessários ou não.
• Os modelos de pagamento por ato praticado – que incentivam atividades em vez de outcomes, aumentando os custos.
CONCLUSÃO
Em 1979, foi fundado em Portugal o SNS, estabelecido como um sistema universal do tipo Beveridge. Segundo o relatório Um Futuro para a Saúde, apesar das falhas que motivam a discussão sobre a reformulação da Lei de Bases da Saúde, reconhece-se que temos um SNS funcional, com padrões elevados e profissionais qualificados, baseado na universalidade, equidade, solidariedade e no acesso a cuidados de saúde de qualidade. Existe, assim, uma base sólida para construir um sistema mais adaptado aos desafios presentes e futuros.: novas tecnologias, envelhecimento da população, aumento da incidência de doenças crónicas, alterações climáticas, resistências aos antimicrobianos, agravamento das desigualdades económicas, etc.
Neste contexto, é relevante considerar o desgaste da crise financeira de 2008 sobre a robustez do nosso serviço de saúde. Até agora, demonstrou extraordinária resiliência, não tendo sofrido decréscimos nos rankings de eficiência. No entanto, um relatório recente elaborado para o Gabinete de Conselheiros de Política Europeia prevê que as desigualdades crescentes (em parte consequência da crise financeira) se tornarão o maior desafio a enfrentar pela Europa, à medida que a fase aguda da crise se dissipar.
Não existe um modelo ideal para um sistema de saúde. Dependerá sempre do contexto nacional mas, genericamente, os modelos europeus baseados na solidariedade apresentam os melhores outcomes, conforme a última avaliação do Commonwealth Fund.
A arquitetura financeira não garante a viabilidade do sistema de saúde, mas uma deficiente arquitetura financeira pode destruí-lo. As reformas na saúde deverão antecipar as desigualdades entre os cidadãos, e ser implementadas de forma progressiva, avaliando outcomes e impactos sobre todos os envolvidos.
Autores: António Velha & Vasco Lobo
Comentário: Catarina Monteiro