Nas noites de 10 e 24 de Maio de 1968, a Sorbonne (uma das mais prestigiadas faculdades de Paris) era ocupada por centenas de estudantes. As greves, ocupações e manifestações que se seguiram constituíram o maior movimento de protesto social na França moderna, tendo no seu auge mobilizado cerca de 10 milhões trabalhadores. Ao contrário dos seus pais, a estabilidade económica não se mostrou suficiente para segurar a consciência das novas gerações que, não tendo passado pelas provações da segunda guerra mundial, se inquietavam face ao modelo de sociedade cuja construção estavam a testemunhar. Hoje, num momento em que o Ocidente parece enfrentar um impasse em múltiplas frentes, importa (re)valorizar algumas análises por detrás dos cartazes ambiciosos (ainda que profundamente ingénuos) desta geração, para sempre imortalizada nos românticos acontecimentos que constituíram o Maio de 68.
No momento de decadência do paradigma da sociedade atual, isto é, baseado numa civilização técnico-científica ao serviço de um modelo socioeconómico assente em princípios (quase) exclusivamente economicistas, importa repensar como é que culturalmente nos deixámos levar por tão estranhas e mornas correntes. Se no passado recente, a Europa sabia perfeitamente de onde se originara (da tradição filosófica greco-romana cruzada com a tradição religiosa judaico-cristã) e sabia também para onde se queria dirigir (para o progresso gerador de uma sociedade cada vez mais educada e culta) tal já não parece suceder. A verdade, o conhecimento, a racionalidade e o progresso são, hoje, ecos que nos parecem longínquos (uma espécie de fósseis filosóficos para vislumbrar e apreciar no museu). Assentes num ceticismo e relativismo absolutos (afinal não nos encontramos a viver na era da “Pós-verdade”?), é impossível não cair na tentação de apontar o dedo a autores pós-modernistas como causa da confusão ideológica existente. No entanto, a discussão sobre o papel da cultura (essa arma agitadora de consciências no passado) surge como essencial para o entendimento da dormência existente.
A cultura atual caracteriza-se principalmente (e quase exclusivamente, atrevo-me a dizer) por dois aspetos centrais. Primeiramente, a sua natureza essencialmente visual. Isto é, uma cultura que faz uso (e abuso) dos meios audiovisuais como forma principal de transmitir os seus conteúdos, convidando os interlocutores a um espetáculo incessante onde é exigida uma postura essencialmente passiva com um esforço intelectual mínimo. Este espetáculo interminável constitui por si só o foco do olhar e da consciência social, produzindo um deslocamento do mundo real em direção a um setor que, por se encontrar separado dele, torna-se o lugar do olhar iludido e da consciência manipulável. Em segundo lugar, a função quase exclusiva de entretenimento da cultura moderna. Ou seja, em vez de a cultura, tal como no passado já o fez, preencher as lacunas deixadas pelo abandono de formas do entendimento humano arcaicas, tornou-se superficial, regendo-se pela lógica do mercado (mesclando promiscuamente os conceitos de valor e rentabilidade) e orientando-se para a facilidade e para a distração. Varremos, assim, para pequenos enclaves académicos perguntas tão fundamentais como: Por que razão vivemos neste pequeno astro sem luz própria que teima em girar? Ou mesmo, o que significa quando nos referimos a viver? Não se defende aqui, no entanto, a posição extremada de que a cultura não possa (e deva) ter esse papel de entretenimento e distração. Afinal, perante o Absurdo da experiência humana, as produções culturais devem também providenciar alguma forma de distração (ainda que momentânea). No entanto, a hegemonia atual resultante da sobrevalorização da cultura do espetáculo constitui uma ameaça à construção da consciência social das novas gerações ao conduzi-las por um caminho que há muito já nos parece inexorável: o da construção de uma sociedade altamente tecnológica e científica, abundante a nível de conhecimento (e recursos), mas assustadoramente ignorante no que diz respeito à sua aplicação.
A função predominante de entretenimento, de grande parte da cultura do séc. XXI, cristaliza em si uma realidade diametralmente oposta àquela que no passado teve e que no presente continua a ter nos países onde as liberdades fundamentais ainda se encontram por conquistar. Assim, ao invés de constituir um meio de agitação e crítica social, a cultura do espetáculo perpetua um estado de alienação do indivíduo, fazendo-se adicionar a um rol de itens de onde importa destacar as redes sociais como modo de interação social hoje indispensável e o consumismo desregrado como força motriz económica central. Tal como um jovem filósofo alemão previra, nas sociedades industrializadas avançadas, o papel central do consumo de bens (um fetichismo de mercadorias) imposto por modas e publicidade que constantemente bombardeiam o consumidor (constituindo elas próprias uma forma de produção cultural), assumiu um protagonismo de tal forma central na vida de cada indivíduo que o alienou das principais preocupações sociais, espirituais ou, simplesmente, humanas, isolando-o e erodindo a sua consciência. Com efeito, a produção abundante de bens (produto de um desenvolvimento económico incrível) não conseguiu cessar após colmatadas as necessidades à sobrevivência do indivíduo nas sociedades modernas. O modelo económico assim construído só podia, pois, perpetuar-se fabricando de forma contínua e incansável um rol de pseudonecessidades, transformando o cidadão num consumidor passivo de ilusões fabricadas por outrém. Este conjunto de fabricações tem, por sua vez, um papel determinante na cultura do espetáculo, dirigindo a consciência do indivíduo para o mundo sensível das imagens e aparências. O mundo da satisfação imediata, do fetichismo visual e da instagramação da vida privada de cada um.
Meio século após os acontecimentos parisienses de 1968, num momento em que a política parece paralisada face aos enormes desafios do séc. XXI (desde as alterações climáticas à crescente desigualdade social), (re)valorizemos os levantamentos que ocorreram naquele quente mês de Maio. Quando milhares de estudantes se sublevaram contra o modelo de sociedade que viam ser construído e gritaram: A imaginação ao Poder.
João Bastos, 5º ano