XXXII Edição | Crónica

Nunca ninguém está à espera. Não parece real. E, de repente, ocupa a nossa vida, domina-a até. Os restaurantes fecham, os cinemas fecham, os estudantes vêm ter aulas para casa e os miúdos aprendem pela televisão. Paro e penso se isto está mesmo a acontecer. Num segundo sinto a emoção de estar a viver um momento histórico, no segundo seguinte pergunto-me o que é que isto significa a longo prazo. É este o nosso destino? Sermos escravos de uma rotina inevitável: do quarto para a cozinha, da cozinha para a sala e de volta ao quarto. Sair da cama é mais difícil. O sítio de estudo é o mesmo sítio dos convívios com amigos. É tudo uma mancha, onde os dias se misturam com as noites e não sabemos se é fim-de-semana ou não. Estamos presos dentro destas 4 paredes, mas tudo parece ruir lá fora. Somos estudantes de medicina. Chegámos até aqui porque queremos ajudar, queremos marcar a diferença. Mas chega o momento e não há nada que possamos fazer. Porque a melhor forma de protegermos aqueles que amamos é ficar em casa, por muito que nos custe, por muito que nos faça sentir impotentes.  

Vivemos uma altura onde a distância é uma forma de amor. Mas tenho saudades do abraço. Qualquer abraço. Ver os meus amigos na chamada zoom e não poder chegar a eles. Ver a avó e não poder apertá-la. Lembrar os abraços de capa negra e os momentos descompensados no Egas. Parece tudo uma realidade diferente. Noutra vida, em que tínhamos liberdade para tudo e nem sabíamos. Tudo se desvaneceu tão rápido, sem termos uma palavra a dizer.

E agora aqui estou. A única coisa que me resta é lembrar. Porque quanto mais fechada me sinto fisicamente, mais a minha cabeça viaja. Por tudo aquilo que pode vir, por tudo aquilo que passou, por todas as memórias queridas que guardo no coração. E, inevitavelmente, desejo voltar. A este mundo sem quadradinhos zoom, sem máscara, sem gel desinfetante na bolsa da mochila, sem cotoveladas em vez de abraços e sem 2m de distância.  É quase impossível não pensar naquilo que poderia estar a viver, mas não estou, porque chegou um vírus que decidiu pôr em pausa a vida. Mas o tempo não para, não faz pausa. E isso é frustrante.

Mas ao menos vivo na certeza de que, quando podermos voltar à normalidade, sair de casa e carregar nos botões do elevador sem ter de desinfetar as mãos, os abraços vão ser mais apertados. Quando podermos voltar à normalidade, entrar na faculdade sem usar uma máscara, os sorrisos vão ser mais bonitos. Quando podermos voltar à normalidade, ver os nossos avós sem barreiras, o amor vai ser mais genuíno. E agarro-me a isto. 


Autora: Leonor Carola

XXXII Edição | Público ou Privado: Qual a melhor solução para um sistema de saúde para todos?

COMENTÁRIO

“A saúde constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, religião, credo político, condição económica ou social”. Este é o ponto de partida para uma discussão que, atentando na realidade portuguesa, conclui que o SNS tem qualidade, universalidade, equidade e solidariedade no acesso a cuidados de saúde.

Um ano volvido e numa atualidade pandémica que já não esconde a deficitária economia as autoridades políticas estão mais atentas à importância colossal de um SNS bem financiado para dar resposta eficaz às necessidades da sociedade. Porém, e num tempo de saturação das fileiras públicas, a cooperação com o setor privado adquire destaque neste debate de longa data. A própria Lei de Bases da Saúde refere que “de forma supletiva e temporária podem ser celebrados acordos com entidades privadas...” e, este ano, o governo aprovou o alargamento da ADSE.

Estarão estas medidas a folgar “a joia da coroa portuguesa" para termos um Sistema de Saúde robusto ou é este o princípio do fim da saúde equitativa, justa e solidária...

GRANDE REPORTAGEM | Público ou Privado: Qual a melhor solução para um sistema de saúde para todos?

Em 1946, foi aprovada a Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), na qual podemos ler: Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição económica ou social. Tanto o Banco Mundial como a OMS designaram a cobertura universal de saúde como um objetivo primário.

Atualmente, a discussão no panorama político português tem sido marcada por diversas propostas antagónicas de remodelação da Lei de Bases da Saúde, legislação que estabelece o quadro do sistema nacional de saúde e, particularmente, do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Contudo, o debate rapidamente cedeu a simplificações e dicotomias, nomeadamente a do público vs. privado. Surge na opinião pública a perceção de que estamos perante uma bifurcação e que só podemos tomar um de dois caminhos.

DIFERENTES SABORES DE SISTEMAS DE SAÚDE

O que é um sistema de saúde? Genericamente, corresponde ao conjunto das organizações que prestam serviços médicos (hospitais, centros de saúde, etc.) e que providenciam o seu financiamento (governos, comunidades locais, companhias privadas de seguros, etc.). Dada a sua enorme variedade, os sistemas de saúde podem ser agrupados de várias formas:

1) Modelo Beveridge – baseado num serviço nacional de saúde, de acesso universal, providenciado e financiado pelo governo através do Orçamento de Estado; não exclui a existência de prestadores de saúde privados, que podem ou não receber financiamento estatal (ex.: Portugal, Reino Unido, países escandinavos, Espanha, Nova Zelândia, etc.);

2) Modelo Bismarck – baseado na segurança social, nomeadamente através de seguros obrigatórios (que revertem para “fundos de doença”, que qualquer contribuinte usa com base nas suas necessidades); o Estado vigia um sistema de contratos entre utentes, fornecedores de serviços e seguradoras (ex.: Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Japão e Suíça);

3) Modelo nacional de seguro de saúde – inclui elementos dos anteriores: os prestadores de cuidados são privados, mas o financiamento vem de um programa de seguro gerido pelo Estado, para o qual todos contribuem; não há objetivos lucrativos nos seguros (ex.: Canadá, Taiwan, Coreia do Sul, etc.).

4) Modelo out-of-pocket – não há um sistema de garantia de acesso universal a cuidados de saúde, sendo estes pagos diretamente pelos utentes; apresenta tendencialmente maus outcomes e é característico dos países em desenvolvimento (ex: África, Índia, China, América do Sul, etc.)

5) Modelo Semashko – diretamente controlado pelo Estado, que é proprietário de todas as infraestruturas, financiador de todos os procedimentos e alocador dos serviços à população (ex.: Rússia, Bulgária, Polónia, República Checa, etc.) Relativamente à natureza do financiamento dos sistemas de saúde, encontramos uma panóplia de métodos que inclui fundos governamentais, seguros de saúde ou sociais obrigatórios (financiados de forma pública, privada ou ambas), seguros de saúde voluntários (privados), fundos pessoais, ONGs e até corporações. No geral, cada país aplica vários destes métodos, diferindo na sua dominância relativa.

E EM PORTUGAL?

Segundo o relatório Health Systems in Transition, em 2010, a tendência de crescimento dos gastos públicos, que se verificava desde os anos 90, inverteu-se e deu lugar a um aumento da despesa privada.

Em 2014, o setor público contribuía para 66,2% dos gastos em saúde (menor que a média europeia: 76,2%), e o setor privado para os restantes 33,8%, dos quais 5,4% provinha de seguradoras e 27,5% de gastos out-of-pocket (taxas e co-pagamentos cobertos diretamente pelos utentes em produtos farmacêuticos, exames laboratoriais e imagiológicos ou, controversamente, taxas moderadoras) - este último está entre os mais altos a nível europeu e constitui um grave fator de inequidade.

No geral, o SNS oferece cuidados universais e compreensivos aos cidadãos e contratos com privados permitem ao SNS, como financiador, alcançar as necessidades dos utentes em testes laboratoriais, imagiologia, diálise e reabilitação. No entanto, os tempos de espera elevados permanecem um problema major, com impacto no acesso, equidade e proteção financeira (os utentes procuram no setor privado respostas que não alcançam no SNS), e poderão constituir a explicação para a magnitude de pagamentos sob a forma de gastos out-of-pocket. Recentemente, estes e os do setor privado têm aumentado, apesar da oferta de serviços no SNS não ter diminuído, o que sugere que cidadãos com maiores rendimentos se têm virado para os cuidados privados devido à insatisfação com o SNS.

OS CAMINHOS ADIANTE

Segundo o relatório Um Futuro para a Saúde, da Fundação Calouste Gulbenkian, o SNS é financiado de três formas principais:

1) receita de impostos;

2) co-pagamentos e taxas pagas pelos utentes;

3) subsistemas e sistemas privados de seguros de saúde.

Segundo o relatório, há um consenso geral na população a favor da manutenção do financiamento do SNS pelos impostos, e da sua acessibilidade de forma equitativa e universal. A adoção de um sistema totalmente privado teria benefícios incertos e uma implementação excessivamente dispendiosa. A margem para aumentar os impostos gerais é reduzida, pelo que se sugere aumentar os impostos sobre os produtos pouco saudáveis e criar incentivos para comportamentos saudáveis. Quanto aos co-pagamentos, reconhecem-se as suas desvantagens: evidências indicam que reduzem a utilização dos cuidados de saúde, tanto os inadequados como os necessários, tendo um efeito negativo sobre os mais desfavorecidos. Além disto, quando elevados, requerem isenções para os grupos mais vulneráveis e levam os utentes com mais meios a optar por um seguro privado. Dada a sua natureza regressiva (ignoram os rendimentos do pagador), implicam um maior risco de famílias e cidadãos com menores rendimentos se confrontarem com custos incomportáveis.

Os subsistemas de saúde (sendo o maior a ADSE, subsistema voluntário e pago, para funcionários públicos e os seus familiares) têm como principal vantagem a possibilidade de recorrer diretamente ao setor privado pagando uma reduzida quantia, sem aprovação prévia do subsistema. Isto resulta em maior utilização de recursos ao invés de melhor qualidade dos mesmos. Pela sua natureza, os subsistemas apenas estão ao alcance de pessoas com garantia de emprego, deixando tendencialmente de parte os mais idosos e os mais pobres, que comportam os maiores problemas de saúde e poderão não ter emprego. Dada a sua condição, também não conseguem comportar os planos de seguros privados, apenas disponíveis para quem tenha meios suficientes. Desta forma, o alargamento da ADSE é frequentemente apontado como potencialmente adverso para a sua sustentabilidade.

Quanto ao setor privado, a concorrência pode melhorar a qualidade e os tempos de espera nos serviços, desde que cumpridos uma série de pré-requisitos respeitantes à liberdade e informação do consumidor e à regulação do setor, apesar de se levantarem questões acerca da continuidade de cuidados e colaboração entre prestadores. Em 2010, a OMS recomendou a Portugal que se esclarecesse e regulamentasse o papel do setor privado “através de um enquadramento político coerente”. O relatório da Gulbenkian sugere, assim, a adoção de uma abordagem pragmática, fazendo participar este setor, com fins lucrativos e não lucrativos, na sua missão de proporcionar serviços de qualidade, exigindo transparência e respeito pelos mesmos valores que o setor público. Na base desta iniciativa estará a criação de um Acordo Público-Privado que defina esse quadro legal, visando o benefício da população e dos doentes e não apenas do setor privado.

Finalmente, o relatório adverte contra alguns pontos fulcrais:

• O fenómeno de “procura motivada pela oferta” – criar novos serviços aumentará a procura, sejam necessários ou não.

• Os modelos de pagamento por ato praticado – que incentivam atividades em vez de outcomes, aumentando os custos.

CONCLUSÃO

Em 1979, foi fundado em Portugal o SNS, estabelecido como um sistema universal do tipo Beveridge. Segundo o relatório Um Futuro para a Saúde, apesar das falhas que motivam a discussão sobre a reformulação da Lei de Bases da Saúde, reconhece-se que temos um SNS funcional, com padrões elevados e profissionais qualificados, baseado na universalidade, equidade, solidariedade e no acesso a cuidados de saúde de qualidade. Existe, assim, uma base sólida para construir um sistema mais adaptado aos desafios presentes e futuros.: novas tecnologias, envelhecimento da população, aumento da incidência de doenças crónicas, alterações climáticas, resistências aos antimicrobianos, agravamento das desigualdades económicas, etc.

Neste contexto, é relevante considerar o desgaste da crise financeira de 2008 sobre a robustez do nosso serviço de saúde. Até agora, demonstrou extraordinária resiliência, não tendo sofrido decréscimos nos rankings de eficiência. No entanto, um relatório recente elaborado para o Gabinete de Conselheiros de Política Europeia prevê que as desigualdades crescentes (em parte consequência da crise financeira) se tornarão o maior desafio a enfrentar pela Europa, à medida que a fase aguda da crise se dissipar.

Não existe um modelo ideal para um sistema de saúde. Dependerá sempre do contexto nacional mas, genericamente, os modelos europeus baseados na solidariedade apresentam os melhores outcomes, conforme a última avaliação do Commonwealth Fund.

A arquitetura financeira não garante a viabilidade do sistema de saúde, mas uma deficiente arquitetura financeira pode destruí-lo. As reformas na saúde deverão antecipar as desigualdades entre os cidadãos, e ser implementadas de forma progressiva, avaliando outcomes e impactos sobre todos os envolvidos.

Autores: António Velha & Vasco Lobo

Comentário: Catarina Monteiro

XXXII Edição | Encarcerados Livremente

Portas, escadas, paredes. Procurei-me. Perdi-me. Perdi-me. Procurei-me. Andava eu na subida infinita, decidido na chegada ao topo, nem perto nem longe deste, quando se fecharam portas, ergueram-se paredes nunca vistas que já existiam, deu-se a quarentena. Até essa data já tínhamos por hábito viajar, íamos juntos, eu e ela. A partir daí, portas, escadas, paredes. Não me esgotou saber que não sabia o que iria acontecer, não me esgotou saber que era o início de uma época diferente para todos nós, esgotou-me ela, com a sua incessante mania de viajar livremente por caminhos que não exigem sair à rua, os caminhos escuros do meu ser. Esgotou-me a falta do falar e de me aproximar das pessoas que mais perto adoro ter. Esgotei-me eu. Ao início não me apercebi o quanto me poderia afetar esta nova forma de existir. Comecei por refugiar-me nos meios de comunicação digital, não eram suficientes, dediquei-me totalmente aos estudos, erro meu. Passou um terço do ano em que tudo o que vi foram portas, escadas, paredes. Sei que o mais certo teria sido arranjar formas de evadir, livros, filmes, música, mas a questão continuava, faltava o toque que pensei não precisar, até que me agoniei pela sua falta. 

Como se não bastasse ter-me perdido enquanto estava encarcerado com ela, assim que as portas voltaram a abrir e deixou de haver tantas paredes, talvez por estar fragilizado por um período que me trocou as voltas, deixei-me levar pelas doces palavras dele, eram fáceis de perceber, aconchegantes de se ouvir, reconfortantes. Cheguei ao ponto em que confiaria nas suas ideias de forma cega, até que eventualmente a vida nos acorda para a vida e percebemos que nem sempre o que pensávamos ser seria. As portas estavam finalmente abertas, mas o meu coração desta vez queria ser encarcerado, apenas com o dele. Magoei-me. Recuperei? 

Apesar de tudo, as portas não se abriram completamente, abriram-se aos poucos, da mesma forma que, aos poucos, fui retomando a liberdade. Sair da quarentena foi quase como recuperar uma parte de mim que ficou não esquecida, mas suprimida. Reencontrar quem ansiava ver, voltar a ter a possibilidade de ansiar por conhecer alguém, experimentar coisas novas, ser livre. Mesmo assim, sinto e sei que continuamos todos encarcerados, uns com os outros, livremente, porque pouco importa se há quarentenas ou não para estarmos juntos. Eu sou eu, ela é a minha mente e ele, um amor perdido que reservou uma cicatriz no meu coração. Somos um. Graças a este período, complementei partes de mim que nunca entenderia tão rapidamente noutras circunstâncias. Consigo, agora, não só imaginar, mas compreender que todos nós temos o nosso ela e ele encarcerados no nosso ser, mas isso não nos impede necessariamente de ser livres. Tornei-me mais sábio. Depois de tudo isto continuo sem estar perto ou longe do topo que todos buscamos, mas pode ser que esta sabedoria me leve mais perto. Uma coisa sei, eu sou eu e o topo é a felicidade.

Autor: André Vares

XXXII Edição | O Que Continua a Ressoar

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Num período extremamente atípico e inédito nas nossas existências, a revista RESSONÂNCIA decidiu “pausar” o mundo e recordar alguns dos artigos que marcaram a revista e a nossa comunidade estudantil nos últimos anos. 

Procurámos comparar o mundo pré-COVID com a atualidade, mantendo um espírito crítico sobre o que o futuro nos espera.

Assim, esta XXXII Edição (re)publica os artigos que mais se destacam pela sua pertinência atual e inclui um pequeno comentário sobre o que mudou e o que permaneceu igual desde a data de redação dos mesmos. 

Fica aqui o convite para acompanhares o que continua a ressoar.

De que estás à espera?

XXXII Edição | Os Media Como Educador Médico

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Comentário

Mais que reflexivo e intemporal, o artigo escrito por Joana Cabrita, em 2016, faz todo sentido diante do cenário pandémico enfrentado no último ano, onde nos deparamos com uma grande quantidade de informações disseminadas numa alta velocidade que mudavam constantemente, consoante o conhecimento científico avançava, o que nos faz repensar a importância da confirmação da veracidade de notícias que consumimos e partilhamos no nosso dia a dia. Cabe aos Media, bem como a toda população, a responsabilidade de veicular notícias fidedignas, de acordo com as diretrizes científicas, que promovam corretamente a literacia em saúde.

Os Media Como Educador Médico 

Assistimos ao papel crescente dos meios de comunicação na sociedade em geral, sobretudo no que toca a conteúdo de rápida apreensão, como o que é veiculado através da internet. Contudo, para além do mundo online, também o tradicional “pequeno ecrã”, a rádio, as revistas e jornais são responsáveis por muito daquele que é o nosso conhecimento em determinadas matérias. A saúde não é exceção. Se, no passado, grande parte do que os utentes dos serviços de saúde conheciam acerca das doenças e seus tratamentos era fornecido pelo contacto com profissionais da área, nomeadamente médicos e enfermeiros, atualmente o panorama mudou. A medicina paternalista deu lugar à medicina partilhada. Cada vez mais o profissional de saúde é confrontado com informação prévia pesquisada de forma autónoma pelo doente. E aqui surgem diversas questões: 

Qual a veracidade do conteúdo que o utente encontra? Que impacto pode ter na relação médico-doente essa informação, quando não corresponde à prática médica mais correta e efetiva no contexto atual?

Em 2007 foi publicado na Acta Médica Portuguesa um artigo da autoria de Silvina Santana e A. Sousa Pereira, que procurava analisar a forma como os cidadãos portugueses utilizavam a internet para questões de saúde ou doença, as características dos utilizadores e os efeitos reportados pela sua utilização no relacionamento com os profissionais de saúde.

Através da aplicação de questionários a uma amostra populacional, os investigadores perceberam que, em vários dos utilizadores da internet, a informação encontrada os levou a colocar perguntas ao profissional de saúde. O artigo concluía que “apesar de não contestar a importância do profissional de saúde enquanto fonte de informação, a Internet começa a tornar-se uma importante fonte de informação nesta área para os Portugueses, sendo de prever um aumento na procura de serviços de saúde disponíveis na Internet, o que provavelmente terá implicações na relação médico-doente”. Para além disso, deixava em aberto o seguinte: de que modo se poderá saber como cidadãos com diferentes capacidades e experiências educacionais utilizam a informação obtida na Internet?

Uma tese de mestrado desenvolvida em 2006 (por Lídia Ferreira, do ISCTE-IUL) fez um levantamento de perceções dos médicos portugueses face a esta temática. Debruçando-se sobre a influência da internet no utente, a autora enumera os vários fatores que levam à necessidade de informação pelo mesmo, nomeadamente: o reconhecimento de um problema; o interesse na procura de solução; a avaliação das soluções possíveis; a experiência relativa a uma das soluções; e a adoção de uma solução.

Já nesta altura se compreendia que o utente exige cada vez mais informação sobre o seu estado de saúde, bem como a sua participação na decisão do processo de tratamento. Este estudo concluiu que a troca de informação entre médico e utente parece ter-se tornado mais ampla, uma vez que o conhecimento do utente é mais abrangente, o que parece originar uma aproximação informal na relação entre ambos. Esta alteração pode ter consequências ao nível da relação de confiança, uma vez que pode parecer que o utente está a confrontar a autoridade do médico. De acordo com os resultados deste estudo, o utente deveria ser reeducado, de forma a compreender que a informação na Internet pode ajudar a contextualizar ou a ter uma noção da sua patologia, mas nunca deverá este meio ser utilizado para o tratamento de uma doença. O autodiagnóstico e automedicação resultantes da interpretação da informação seriam dois riscos a eliminar com esta reeducação.

Num artigo publicado em 2015, no Expresso, é ainda relembrado o fundamental no meio de tantos porquês: a importância de saber pesquisar, ou seja, a literacia em saúde. Está provado que doentes bem informados têm melhores resultados clínicos e menos complicações. Contudo, se olharmos para resultados de inquéritos de literacia em saúde recentes, facilmente se percebe que grande parte daqueles que procuram informação não o faz da forma mais correta. 

Apesar dos benefícios inerentes à utilização dos media pelos cidadãos, importa relembrar que os riscos são reais e incluem a propagação de informação errada, desatualizada e que constitua motivo de alarme para o utente. Porém, existe algo que é indiscutível – o médico da atualidade tem que ser capaz de lidar com os vários aspetos relacionados com a propagação de informação sobre saúde pelos media, quer sejam positivos ou não.

XXXII Edição | A Grande Pandemia: Alterações Climáticas

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 Comentário

 A ironia de um texto intitulado “A Grande Pandemia”, publicado no início de dezembro de 2019, não passa despercebida. Há 13 meses, a vida era diferente, com uma leveza inalcançável para a maioria de nós neste momento. Porém, mesmo quando o sol brilhava, existia uma grande nuvem cinzenta a ameaçar-nos: as alterações climáticas. Num ano marcado por algumas boas notícias, como a intenção do presidente dos Estados Unidos da América de regressar ao acordo de Paris, ou o ligeiro decréscimo momentâneo das nossas agressões ao planeta durante o confinamento de março, é importante relembrar que a luta não acabou. Desde mais refugiados, a novas doenças infeciosas, a consequências graves na nossa saúde, a mudança do clima tem um impacto tão grande em nós como nós temos no clima. E, perante a indiferença de quem mais podia fazer a diferença, para lidar com esta crise não podemos esperar por um novo Estado de Emergência.

 

 A Grande Pandemia: Alterações Climáticas

Ondas de calor. Dengue. Ciclones. Asma. Vagas de frio. Melanoma. Secas. Depressão. Incêndios. Cancro do pulmão. Desnutrição. Malária. Enfarte. Cataratas. Acidentes. Diarreia. Alergias. Inundações. Refugiados. Estes são apenas alguns exemplos de consequências das alterações climáticas que afetam a saúde a nível global.

O planeta sempre sofreu mudanças no clima, mas nunca estas foram tão rápidas e tão dependentes da atividade de uma única espécie. A temperatura aumenta, os glaciares derretem e os padrões meteorológicos adulteram-se, originando desastres naturais que provocam a morte a 60 mil pessoas por ano, a maioria em países em vias de desenvolvimento

e com fraca resposta sanitária e humanitária, um número que quase triplicou desde 1960 (1). No momento em que esta reportagem é escrita, chega a notícia de que a Índia declara Estado de Emergência de saúde pública na capital, Nova Deli, devido à poluição atmosférica. Foram distribuídos 5 milhões de máscaras na cidade e estima-se que 700 milhões de indianos vivam expostos a níveis tóxicos de poluição (2).

Ar puro. Água potável. Alimentação saudável. Abrigo seguro. Os principais determinantes de saúde ambientais e sociais estão em risco. O que podemos esperar desta Pandemia? A seguir, uma breve exploração de alguns dos maiores desafios das alterações climáticas à saúde das populações.

 

Ondas de calor

Segundo a World Meteorological Organization uma onda de calor é um período superior a 5 dias em que a temperatura máxima registada ultrapassa a temperatura máxima esperada por mais de 5ºC. Com as alterações climáticas as ondas de calor tornaram-se mais frequentes e mais intensas por todo o mundo. Apesar do aumento da temperatura ser global, as populações menos preparadas são as dos países temperados, onde as infraestruturas são principalmente desenhadas para reter calor durante o inverno (3). 

Os verões europeus têm se tornado cada vez mais severos, sendo registados recordes de temperaturas máximas na Europa Central durante o verão de 2019 (4). Contudo, após a onda de calor de 2003, com mais de 70.000 mortes atribuídas por toda a Europa, tem havido uma maior preocupação dos governos em informar e proteger a população (5). Os mais afetados são os idosos, as crianças e pessoas dependentes nas atividades de vida diárias. De um ponto de vista socioeconómico, as pessoas que vivem isoladas ou com poucas condições, sem equipamentos de refrigeração, estão em maior risco de sofrer consequências negativas durante uma onda de calor (3).

Durante as ondas de calor há maior afluência aos serviços de urgência, tanto por descompensação de doença de base, como por casos de insolação e desidratação em adultos saudáveis e ativos (como exemplo desportistas ou trabalhadores da construção civil) (3). Os sintomas de insolação mais frequentes são sudorese, alterações de estado de consciência e síncope; são sintomas inespecíficos que podem ser desvalorizados, especialmente pela população mais ativa.

Além das altas temperaturas, as ondas de calor são ainda responsáveis por aumento das concentrações de poluentes atmosféricos, dos quais se destacam O3 e PM10 (partículas inaláveis de diâmetro inferior a 10 micrómetros) (6). Estes poluentes têm ação independente no agravamento de doenças respiratórias e vasculares, facilitando estados pró-inflamatórios e pró-trombóticos (7). Porém, durante ondas de calor e especialmente nos grandes centros urbanos, atuam sinergicamente com as temperaturas elevadas e a desidratação no aumento de sintomas tanto em pessoas saudáveis como em doentes.

A Península Ibérica tem sido relativamente poupada das ondas de calor das últimas décadas, protegida pelas massas de água que a rodeiam. Todavia, Portugal tem uma população cada vez mais envelhecida, isolada e carenciada. Além de emitir alertas nos dias de maior perigo, a Proteção Civil cria também abrigos temporários de livre acesso em zonas mais carenciadas.

 

Poluição Atmosférica e Alergias

O atual aumento exponencial nos casos de reações alérgicas não é, de todo, independente das alterações ambientais das quais o nosso planeta é vítima. Com efeito, pensa-se que é esta a principal causa do emergente número de casos de alergias, bem como do agravamento das mesmas (8). 

Uma alergia é uma resposta exagerada do sistema imunitário a estímulos benignos externos do meio, mediada por imunoglobulinas E. Dentro do grupo das alergias mais frequentes, é de ressaltar a asma brônquica, doença que atinge cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo (9). Esta patologia caracteriza-se por uma inflamação dos brônquios, que leva à diminuição do seu lúmen e que se manifesta clinicamente por tosse, pieira e dispneia (10). 

A poluição, nomeadamente a atmosférica, tem como causa relevante a emissão excessiva de gases resultantes da queima de combustíveis. Como exemplo significativo, distinguem-se as Diesel Exhaust Particles (DEPs), partículas derivadas da combustão do Diesel dos veículos motorizados. Estas partículas são constituídas por um carbono elementar central, que incorpora uma variedade de substâncias, nomeadamente hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, cetonas, álcoois, cicloalcanos, bem como aerossóis de origem orgânica que, por si só, já detém um carácter alergénio considerável (7). Agregadas às DEPs, estas substâncias químicas orgânicas, como as partículas em suspensão no ar (pólen), formam macromoléculas com potencial alergénio acrescido, tendo consequências consideravelmente piores do que aquelas que as partículas orgânicas isoladas, relativamente ao desencadeamento de reações alérgicas.

 

Doenças Infecciosas

A transmissão de doenças com origem hídrica e alimentar é largamente dependente das condições climáticas, uma vez que a precipitação influencia o transporte e disseminação de agentes patogénicos, enquanto a temperatura afeta a seu crescimento e sobrevivência. Também a ação humana, através da descarga imprópria de resíduos, contribui para potenciais ameaças à quantidade e qualidade da água e alimentos, comprometendo a segurança alimentar (11,12). 

O clima é ainda o grande responsável pelo perfil de distribuição das doenças infecciosas transmitidas por vectores. É provável que o período sazonal de transmissão e a distribuição geográfica de determinadas doenças alargue, como já ocorre na China com a Schistosomíase (1), uma parasitose dos climas quentes. A malária continua a ser um grande problema de saúde pública, matando mais de 400.000 pessoas por ano, sobretudo crianças africanas com menos de 5 anos. No Brasil, os casos de dengue aumentaram sete vezes em 2019. Estas são duas doenças transmitidas por mosquitos, Anopheles e Aedes, respectivamente, cujo ciclo de vida é extremamente sensível às condições climáticas, especialmente à temperatura e precipitação (1,11).

 

Desastres Naturais

As inundações e ciclones causam devastações que se traduzem em danos materiais e perda de vidas humanas, com um aumento significativo de casos de afogamento, trauma, acidentes e ansiedade generalizada (12). 

Metade da população mundial vive a menos de 60 km do mar (1). O aumento do nível médio das águas e a escalada de eventos extremos de natureza meteorológica destruirão casas, infraestruturas sanitárias e outros serviços de assistência às populações (1). As comunidades serão forçadas a migrarem, criando os chamados refugiados climáticos. Surgem assim riscos associados à aglomeração de populações deslocadas e stress psicossocial (11).

 

 

Concluindo, entre 2030 e 2050 as alterações climáticas serão responsáveis por 250.000 mortes adicionais por ano, 38.000 nos idosos por ondas de calor, 48.000 por diarreia, 60.000 por malária e 95.000 por desnutrição infantil (1). É urgente não só a criação de políticas, mas também tomar decisões individuais que visem suportar uma resposta global de saúde pública perante esta pandemia que poderá ser a última que a Humanidade enfrentará.

 

 (1) WHO (2019) Climate change and health. Consultado a 2 Novembro 2019, https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/climate-change-and-health; (2) Público. (2019). Poluição: estado de emergência de saúde pública declarado em Nova Deli. https://www.publico.pt/2019/11/01/mundo/noticia/nova-deli-distrubui-cinco-milhoes-mascaras-devido-niveis-toxicosar- 1892166; (3) Kovats RS, Kristie LE. Heatwaves and public health in Europe. European Journal of Public Health 2016 Dec; 16 (6); 592–599; (4) Baker, Sinéad (25 July 2019). Europe is battling an unprecedented heat wave, which has set records in 3 countries and is linked to at least 4 deaths".Business Insider. Insider Inc.; (5) Robine JM, Cheung SLK, Roy SL et al. Death toll exceeded 70,000 in Europe during the summer of 2003. C. R. Biologies 2008; 331; 171–178. (6) Analitis A, Michelozzi P, D’Ippoliti D et al. Effects of Heat Waves on Mortality. (7) Epidemiology 2014 Jan; 25 (1); 15-22. (8) Anderson JO, Thundiyil JG, Stolbach A. Journal of Medical Toxicology 2012 Jun; 8 (2); 166–175. (9) Clark, T. (2000). Asthma. 3rd ed. London: Arnold. (10) Takano, H., & Inoue, K. I. (2017). Environmental pollution and allergies. Journal of toxicologic pathology, 30(3), 193–199. doi:10.1293/tox.2017-0028; (11) DGS (2019). Consultado 27 Outubro 2019, em https://www.dgs.pt/em-destaque/ dia-mundial-da-asma-3-de-maio-pdf.aspx; (12) WHO (2019). Climate change and human health - risks and responses. Summary.Consultado a 2 Novembro 2019, em https://www.who.int/globalchange/summary/en/index5. html; (13) Tavares, António. (2018). O Impacto das Alterações Climáticas na Saúde. Acta Médica Portuguesa. 31. 241. 10.20344/amp.10473.


DATAS ESPECIAIS | Sonho de Mulher

O homem sonha,

mas Deus não quer.

Onde está a obra?

Pior ainda se for mulher.


De rosto estafado

e olheiras sem fim,

trabalha por turnos,

mas diz que é mesmo assim.


Esforça-se em dobro,

para ter metade de tudo.

E o devaneio

que lhe ilumina os olhos

fica num canto, mudo.


“Talvez um dia”,

como quem diz:

“quem sabe se ainda

não vou ser feliz”.


Vai-se logo a esperança,

com a noite a cair.

A obra fica esquecida

e no meio desta vida

será difícil surgir.


O amanhã aparece,

e mais um dia qualquer.

Fica tudo igual, 

e assim permanece

porque ela nasceu mulher.


Autor: Beatriz Francisco - 3º Ano

Ilustração: Guilherme Luís - 5º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Médicos (In)completos

Na incerteza dos tempos que vivemos,

São várias as alterações que sofremos.

Ó estudantes de medicina,

O quanto da nossa experiência isto nos elimina?


Preparar-se para sair de casa deixou de ser,

Hoje, acordar 5 minutos antes da aula é o que nos faz mover.

Ainda bem, não temos de acordar tão cedo,

Mas até que ponto compensa todo este novo enredo?


Ligaram-se computadores, desligaram-se emoções

O que seremos nós, médicos das próximas gerações?

Seres humanos intitulados de Doutores

Formados entre os seus e outros horrores.


A aluna que se tornou mais cínica,

O rapaz que nunca aprendeu a fazer história clínica

E outro que já não será tão empático

Pudera, as suas férias ficaram em isolamento profilático...


Evita-se o trânsito, os atrasos, o stress matinal

E aquela chuva que já não faz mal.

Nos dias de hoje, a preocupação é achar o link da aula

Cabeça aberta a matéria, corpo dentro da jaula.


Perdemos muito do contacto com os doentes

Através de tecnologias, vemos os docentes

Assim como, alguns colegas, que mais não serão

Pois, não há oportunidade de conexão...


As horas de estágio perdidas

Poderão alguma vez ser substituídas?

Ó estudantes de medicina,

O quanto da nossa experiência isto nos elimina?


O pior é que vai para além do mundo profissional

Ofende as nossas necessidades de animal...

Socializar era algo que fazia parte

Atualmente, é quase uma obra de arte

É curioso se pararmos para pensar:

Que seria de nós sem uma pandemia a assombrar?

Seríamos igualmente estudantes,

Com sentimentos que se tornariam relevantes.




A rapariga que hoje está em casa fechada

Poderia estar apaixonada

E o jovem que se sente tão sozinho

Conheceria pessoalmente o seu sobrinho


Sentimentos afundados nas adversidades,

Enquanto fantasmagóricas ficam as cidades.

Sair das aulas e lanchar juntos num café?

Resta sonhar para voltar, resta ter fé.


Antes conheciam-se pessoas em conjunto,

Na nova realidade, só trabalhos como assunto.

Seremos um aglomerado de médicos satíricos,

Que socializarão apenas por métodos empíricos?


O mundo silenciou-se num anonimato,

Agora parecemos um mero substrato

Cujo produto final é o desconhecido,

Outrora o que foi quente está arrefecido.


Desta situação retiram-se alguns pontos positivos,

Poucos e fracos perante os negativos...

Por agora teremos de viver neste formato,

Quem não tem cão, caça com gato.


Ao mesmo tempo que todos lutam pela sanidade

Nós lutamos para prosperar na universidade.

Respirem, leiam este hino da saudade, 

Sabendo que no futuro haverá mais felicidade!


Por fim, ficarão sempre algumas questões:

O que seremos nós, médicos das próximas gerações?

Seremos (in)completos?

Fortemente moldados por solitários trajetos?

Autor: André Vares

Ilustração: Felipe Bezerra

DATAS ESPECIAIS | Alegoria de Carnaval

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Costuma-se dizer na gíria popular que “a vida são dois dias e o Carnaval três”. Foi preciso chegar a 2021 para entender o estonteante significado por detrás da expressão. 

Na pré-pandemia creio que o povo se desfaria em animação durante três dias seguidos. Desfiles com carros alegóricos, mascarados de tudo e mais alguma coisa, festa e diversão eram ritual anual em muitas localidades portuguesas dedicadas 100% à festividade. Pessoalmente não me diz muito. Há uma vida atrás era a desculpa para um fim de semana festivo dedicado à “feira das tradições e atividades económicas” da terra natal onde o foco estava no cartaz artístico que iria animar as noites e o desfile escolar. No meu último desfile era uma “Branca de Neve” sem anões, não sei bem porquê já. Ao fim da segunda rotunda já me tinha fartado da ocasião. “O que é demais também enjoa”, um ditado popular que também se coaduna face à situação atual.

Então, mas que raio de matemática é essa em que o Carnaval dura mais que a vida? Bem, a verdade é que entre máscaras mais assim ou assado, já lá vão dois confinamentos e quase um ano onde a máscara passou a ser adereço obrigatório nos escassos desfiles à rua e mais além. Máscaras salva-vidas estas que chegaram até ao Carnaval de 2021! Há ainda quem não ache piada ao disfarce e se recuse a alinhar na seriedade, entre outros atentados às normas de saúde pública, acabando com a parada de respeito pelos que lutam contra toda esta realidade atroz. Os profissionais de saúde têm “o privilégio” de se disfarçar da cabeça aos pés todo o santo dia. Esses sim vivem um Carnaval infinito que teima em acabar. Afinal, dura muito mais que três dias até. E o mais aterrador é que para muitos, a vida teve mesmo duração inferior a este impiedoso Carnaval. 

O contador nacional mostra já mais de 15 mil vidas desaparecidas em alegoria (muitas mais pelo mundo fora) e talvez teria sido tudo diferente se a folia tivesse sido encurtada, pois, no futuro, há sempre três dias para se celebrar o Carnaval, mas nem sempre há dois dias para viver. 

Autor: Catarina Monteiro - 5º Ano

Ilustração: Guilherme Luís - 5º ano

ENTREVISTA | Dr.ª Patrícia Costa Reis

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No âmbito do Dia Internacional das Mulheres na Ciência, que se assinala a 11 de fevereiro, a Revista Ressonância traz aos seus leitores uma entrevista com a médica pediatra, investigadora e Professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), Patrícia Costa Reis

Laureada em 2019 com o Prémio “Mulheres na Ciência” e nomeada ao Prémio “Mulheres Inspiradoras 2020”, nesta entrevista a Professora levanta temas importantes, como o percurso na investigação científica, e reflexões sobre a representatividade feminina na ciência.

RevR: Se tivesse de descrever o seu percurso académico em 3 palavras, quais escolheria e porquê?

PCR: Escolheria Paixão, Resiliência e Partilha. Paixão porque ser médico, professor e cientista são atividades verdadeiramente gratificantes para mim e é a paixão que dá a energia para vencer os obstáculos. Resiliência porque é preciso ter força, perseverança e muita capacidade de trabalho para seguir este percurso. Partilha porque é o que dá sentido a tudo. Muito aprendi com os meus professores e orientadores e muito espero transmitir às novas gerações. Há ainda a partilha da descoberta conjunta em equipa, o que é um enorme prazer.

RevR: Contrariamente ao panorama mundial, Portugal destaca-se no número de mulheres que estudam áreas relacionadas com a ciência. Segundo a OCDE, Portugal encontra-se acima da média, comparativamente aos outros países que integram esta Organização. Que fatores acha que contribuem positivamente para este cenário? 

PCR: Gostaria de analisar os números de uma forma diferente, uma vez que são muito elucidativos. Mundialmente estima-se que apenas 30% dos investigadores sejam mulheres. Nas posições de liderança em Ciência, este número é ainda menor. Por exemplo, menos de 5% dos galardoados com o Prémio Nobel em Química, Física ou Fisiologia/Medicina foram mulheres. São inúmeros os factores que podem contribuir para esta disparidade, incluindo factores estruturais da sociedade, culturais e educacionais. A Ciência e a Academia espelham o que se passa na Sociedade. Felizmente, em Portugal o número de mulheres dedicadas à Ciência é maior do que noutros países. Em Portugal 62% dos doutorados em Ciências Naturais, Matemática e Estatística são mulheres. Contudo, a proporção de mulheres em altos cargos académicos e executivos é de apenas 30% em Ciências Naturais e 11% em Engenharia e Tecnologia. Temos ainda um longo caminho a percorrer. Contudo, nas últimas décadas, há exemplos de mulheres cientistas de grande valor nas mais diversas áreas e em posições de liderança, que serão certamente exemplos que marcarão as próximas gerações, como é o caso de Maria do Carmo Fonseca, Maria Manuel Mota e Mónica Bettencourt-Dias. O futuro tem certamente muitos obstáculos, mas é promissor.

RevR: Se tivesse de escolher uma figura feminina que a inspire (cientista célebre, professora, colega, aluna, etc), quem escolheria e porquê?

PCR: Escolheria a Cláudia Faria, que como sabem, é neurocirurgiã no Hospital de Santa Maria, professora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e cientista no Instituto de Medicina Molecular. A Cláudia é profundamente inspiradora. Dedica-se muitíssimo aos seus doentes e faz investigação de grande qualidade sobre os mecanismos moleculares que estão na origem dos tumores cerebrais, particularmente os pediátricos. Além disso, fomenta a paixão pela Ciência nos alunos de Medicina e em crianças de todas as faixas etárias. É muito desafiante e árduo ser um médico-cientista em Portugal e a Cláudia mostrou-me que é possível seguir este percurso no nosso país.

RevR: O que diria, se pudesse voltar atrás, à Patrícia com 18 anos acabada de chegar à faculdade? E à Patrícia no momento em que acabou o curso?

PCR: À Patrícia acabada de chegar à Faculdade diria para fazer Projectos GAPIC e conhecer melhor os excelentes grupos que fazem investigação no Instituto de Medicina Molecular. 

À Patrícia que acabou o curso diria para aproveitar todas as oportunidades para fazer estágios clínicos e/ou de investigação em centros de excelência pelo mundo fora. São grandes ocasiões de aprendizagem não só técnica, mas também sobre modelos de organização de cuidados de saúde e formas de prestar cuidados aos doentes. São também momentos únicos em que se criam redes de investigação e profundos laços de amizade. Tive a oportunidade de fazer vários estágios que me marcaram e que foram determinantes para a minha aprendizagem. Diria também que é fundamental ter um bom equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal, o que é algo particularmente difícil na nossa profissão.

RevR: Por último, gostaria de deixar aqui algum conselho ou palavras de incentivo às jovens investigadoras ou a quem pretenda ingressar no mundo da investigação?

PCR: É um prazer enorme fazer ciência. 

Como médicos cuidamos de doentes com determinadas patologias e da observação destes doentes surgem dúvidas e hipóteses que queremos testar. Ter a possibilidade de ir para o laboratório e tentar responder a estas dúvidas e tentar avançar com o conhecimento num determinado campo é fascinante. Um médico não se deve afastar da produção de conhecimento, porque a sua experiência diária e o seu entendimento dos doentes é enriquecedor para a atividade científica e pode guiá-la no sentido de se encontrarem novas formas de diagnóstico e de tratamento, que podem melhorar a qualidade de vida dos doentes. Fazer ciência é uma extensão da Medicina.

As três características fundamentais para um bom investigador são: ser curioso; ser resiliente e ser apaixonado pela Ciência. Se este for o vosso caso, não desistam e construam o vosso próprio percurso, escolhendo sempre bons mentores que vos guiem e ajudem ao longo do caminho que terão de desbravar. 

Autor: Anamélia Almeida

Ilustração: Ana Paula Martins

Edição de Imagem: Guilherme Luís

ÂNSIA CRÓNICA | Tinta Permanente

Dizem-nos sempre: “Não há nada permanente, tudo é passageiro”. Mas há passageiros demoradamente enganadores, sombras voláteis de um permanente que nunca serão.

“Para sempres” finitos, temo-los todos, a desfazer-se em decaimento como o cotão no fundo dos bolsos. Vai estando... Um dia trazemos de dentro a mão vazia, como numa realização lúcida do sentido de tudo. Já não há cotão.

Há passageiros que demoram, que demoradamente doem, ácido em gotas que nos lava a cada segundo, por Fado sagrado ou capricho se Deus, se é que são coisas diferentes. A velhice que docilmente se precipita para a esperança com o passar lento dos anos, ignorante de que a esperança é vinho mosto e, no fim, sabe a terra.

A lentidão, o padrão, o igual de todos os dias segue a turvar a visão do fim, rotineiramente. A lentidão é a derradeira sina, a prisão é repetida, tem simetria entre vida e vida. Somos assim levados a crer na errónea, cega e diabólica mestria do engano. Magia, macumba, superstição. Um guia, um mapa, uma mão, cada qual escolhe a corda para melhor se enforcar. 

Tango infernal, interminável na burla de ter acorde final, é o que dançamos mal acordamos para cumprir o acordo que escolheram para nós. E recolhemos amores, promessas de “sempres”, sempre, que sempre acabam. Comemos notas, arrotamos cêntimos, saciados de vazio. Não passam de atenuantes da pena na prisão da não perpetuidade, passatempos que nos distraem da passagem certa e certeira do tempo.

Vamos depois aos grandes livros, ilusões de sobrevivência ao destruir de tudo; damos ouvidos (e olhos, e dentes, e o corpo todo) às grandes vozes, cujos nomes todos sabemos de cor. Ingénuos, todos nós, que eles existem somente numa persistência parasita da existência nossa. Ajoelhamo-nos, rezamos, absorve-nos a Palavra da Eternidade paradisíaca, mas fustigamos a pele para oferenda a quem é tão finito como nós, sujo à nossa medida e que é, no fundo, espelho, mas de profundidade humilhante para quem nele mergulha e se entrega. E como se tivesse escolha...

Já nascemos entregues, vivemos o inevitável até se consumar o último passageiro. Tudo o mais é vento que passa. Por mais amor que dermos. Por mais florestas que plantarmos e por mais palavras que cravemos em papel inflamável, cadáver das árvores que regámos. Por mais filhos que trouxermos ao degredo, numa sacrossantificação deprimentemente cómica da fornicação a que todo se resume o animalesco do ser.

No final, ardemos com os livros que escrevemos e as florestas que criámos. Morre a memória. Sucumbem os grandes nomes. O Diabo ri! Ah, que riso encherá todos os cantos inexistentes do nada, o único permanente!

Violamos os nossos filhos quando os pomos no mundo. Impomos-lhes o sexo da felicidade engarrafada, comprimível em 100mg. Comemos-lhes os corações, o seu sangue sabe a casa e à indústria das cores. Os bebés mamam das mamas das mães petróleo negro. E o seu berço é um caixão cor de rosa, de plástico.

Duradouro! Seguro de vida! Segurança! Perfumado! Estabilidade! Tinta permanente! Tanta ilusão...

Dor no sangradouro da morte que segura a vida.

Esperança de derrame sobre a monstruosa idiotice, detestável e imunda, do respirar o sangue infeto que nos faz vivos.

É esta a tinta que recebemos das Vossas mãos, Cristo, Nosso Senhor! O Reino da Glória é um silêncio de morte e cheira mal. Louvado seja!


Setembro 2020

Autor: Ana Fagundes - 2º Ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | O Rio

Passa por mim um rio.

Vem por vezes, de manso, 

Agitar o que julgava fixo.


Não sei de onde vem

Nem onde fica

Mas convida-se a levar as pedras já curvas.


Penso onde nascerá, 

Tal água turbulenta. 

Dizem, alguns, que vem daquele canto 

Duma tal massa cinzenta. 

Autor: Carolina Malta Gomes - 2º Ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano

Fotografia: Catarina Monteiro - 5º ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO | Durmo no Campo, Vivo na Cidade

Durmo no campo,

Vivo na cidade.

Hoje vejo-me aqui presa

E sou só saudade.


Falta-me o rebuliço da aventura

Que é sair à rua 

Sem saber bem

O que me vai esperar.


Falta-me o ruído das ruas

E a rotina de todas as horas

Que várias vezes pensei odiar.


Que voltem aqueles dias 

Que começam demasiado cedo

Se isso significar que valem a pena

Terem um início sequer.


Agora durmo no campo

E vive aqui alguém.

Não sou eu.

É uma versão de mim

Que reconhece aqui o encanto

Mas quer voltar a ter o espanto

De viver no momento, 

E na cidade também.



Autor: Filipa Dias - 2º Ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano

Fotografia: Beatriz Francisco - 3º ano

CONTRA-CORRENTE | Luzes, Câmara, Votação!

À primeira vista o filme é, no mínimo, aborrecido. Com traços que roçam o distópico e que deixam adivinhar um certo mau-gosto do realizador, o próximo dia 24 de janeiro aproxima-se, oferecendo um enredo relativamente previsível, desenrolado sob um pano de fundo de frio, medo e doença. As próximas eleições presidenciais ameaçam, por isso, ser um autêntico fracasso de bilheteira, desencorajando até os mais interessados cinéfilos a largar o xaile e a Netflix (ou os livros e as sebentas para os mais estudiosos) para irem votar no chefe de Estado dos próximos 5 anos.

          Portanto, será expectável que os críticos mais mordazes olhem com desinteresse para o próximo grande evento da vida portuguesa. Fortificarão por certo a sua posição afirmando que o papel de Presidente da República é sobretudo representativo no contexto político do nosso país. Responderão com a vitória anunciada de uma figura moderada, responsável e popular como Marcelo Rebelo de Sousa àqueles que lhes lembrarão a importância determinante da influência presidencial, do seu poder de veto ou da capacidade de nomear um governo e de dissolver a Assembleia. Para encerrar a questão, mencionarão o desconhecimento geral de alguns dos candidatos (ou personagens!) envolvidos, que afasta o público da estória a contar.

          Mas do lado dos geeks de cinema, que se mantêm fiéis às sagas, quer o último filme seja um blockbuster, quer acabe por estragar o que aí estava a ser uma autêntica obra-prima, ouvem-se alertas relevantes. Para além da clássica noção de cidadania, que reconhece no voto uma mistura entre direito e dever, resultado de lutas árduas, há a notar que se vive um tempo singular. Por um lado, a crise social, económica, de saúde pública e até humanitária que vivemos justifica por si só que cada um dê exemplo de uma sociedade viva, proativa na construção coletiva do rumo que havemos de seguir. Por outro, hoje em dia de nada valem as sondagens contra a força da realidade concreta e imprevisível, desenhada por cada membro da sociedade no momento em que faz a sua cruz. A verdade é que há forças que se mexem no anonimato mediático mais capacitadas a mobilizar os seus apoiantes, particularmente os extremismos, porque a revolta contra o sistema se superioriza ao comodismo dos que consideram a democracia e a liberdade como valores adquiridos por fatalidade. Assim, as Presidenciais serão um momento-chave que perscruta o futuro, ajudando a perceber até que ponto se pode esperar uma estagnação dos extremos políticos em Portugal ou se se adivinha o seu crescimento ameaçador como em grande parte do mundo.

          Da minha parte, hei-de ir ver o filme ou não tenha um geek em mim. Como não quero ir sozinho, vou pedir ao leitor que venha também! O meu conselho para quem não está familiarizado com as personagens é que perca uns minutinhos a familiarizar-se na net ou, então, que peça ajuda àquele amigo que acompanha tudo o que é cinema. Afinal de contas, todas as oportunidades são boas para se adiar o estudo.


Autor: Diogo Miranda - 6º Ano

Ilustração: Guilherme Luís - 5º ano

ÂNSIA CRÓNICA | O Nome que dói

O teu nome é o epíteto específico da espécie de dor que eu sinto.  

E mergulho num éter de convulsa apatia a cada facada torpe, cada sílaba desse teu título esmagada compassada contra o meu palato. Com este conjunto de sílabas te anuncias, atrás dele te mascaras e escondes, com ele me sufocas em todos os “ondes”.

Podia dizer-te meu caro, ou que sinto amor, mas esta palavra está suja e rota. Olho para dentro dela e está vazia, semanticamente. Usam o amor e vendem-no. O amor é muito barato, está em todas as promessas. Prefiro odiar-te, com todo o rancor que em mim houver. Guardar o fel e escrevinhar, com ele, o teu nome pelas paredes da minha alma. Sentar-me depois a sorvê-lo como coisa estrangeira, corrupta.

Bebo o sangue das tuas veias para que no fundo da minha boca fique o teu nome, como uma canção triste. Vou regar, depois, a tua sepultura com as lágrimas minhas, cheias dos átomos teus. Eu quero enterrar-me viva sob as letras que escreves no fim das tuas cartas, as que eu recebia sempre. Aquelas que não chegaste nunca a escrever. Quero dormir contigo na sombra dos jazigos, aconchegar o meu frio nas tuas vestes funestas e envenenar-me num derradeiro beijo. Quero balas e fogo. Não… Não quero amor. O amor vende-se em jornais e compra-se avulso, porque fica mais em conta assim e evitam-se overdoses. E o amor sente-se com as mãos. Mas olho para as minhas palmas e vejo-as, sós. Eu olho as minhas palmas e vejo palmas, vazias. Montes de células inúteis que quero ver estoirar, projetadas contra a distância infinita que há entre mim e a tua inexistência.

Eu não te sinto com o coração. Ele, se é que bate, fá-lo em vão, que o código morse que envia não recebe resposta. Eu tateio o ar onde te vejo e nunca te toco. E não há sombra no chão. Fito-te os olhos cheios de ar e choro. És imóvel como um cadáver, que vive apesar das mil mortes, ou por causa delas (?). Tu dóis. O teu nome dói. E quem és tu? O que és se te posso unicamente odiar, porque não te consigo sentir, porque só te posso pensar? Odeio-te por te pensar, porque te pensei uma vez e outra, até que te tornasses um nome que não me cansei de (esc)rever. Não cansei de doer, masoquistamente-viva.

Fantasma chamar-te-ia o mundo. Porque me visitas, breu da noite, essência tua que me cedes como oferenda. Anjo infernal, quero ver-te arder. Mas tu não te inflamas, chamas(-te). Eu chamo-te em neurótico desatino e, por te ter chamado, dóis-me. 

Tu és só um nome que dói, designação de nada, imagem de um umbrático ninguém.

Tu, que me persegues a carne que não tens, que me destróis, lacaio do demónio que me habita a cabeça, numa cefaleia.

Tu, nome berrado por ninguém, que ribomba sem parar. Por desdém.


Autor: Ana Fagundes - 2º Ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 4º ano

Legalização da Prostituição

A seguinte entrevista é um complemento ao artigo "Legalização da Prostituição" da autoria do Antonio Lopez que será publicado na XXXI Edição da RESSONÂNCIA. Esta edição é completamente digital e será lançada dia 17 de julho!

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Apresento-vos a Maria, nome fictício, 35 anos, ascendência brasileira, viveu quase toda a sua vida em Portugal, no Algarve. Tem 2 filhos e após o divórcio ficou numa situação bastante difícil. Tinha 2 trabalhos em que trabalhava conjuntamente mais de 12 horas por dia de segunda a domingo e pouco ganhava. Não tinha tempo para a família e sentia-se exausta. Tudo piorou quando foi despedida de um deles sem o mínimo aviso. E aí todo o Mundo parecia descambar até que viu um anúncio promissor na internet e decidiu arriscar e a partir daí, a sua vida não foi a mesma…

Q: Maria como classifica o antes e depois de ter sido despedida do seu emprego há quase 5 anos?

R: Não tem como descrever, passei a fazer algo que nunca pensei sinceramente fazer. Depois de responder àquele anúncio a minha vida mudou para melhor. Tenho estabilidade financeira. Tenho tempo para os meus filhos. Tenho tempo para mim. É indescritível

Q: Conta-me, como tudo aconteceu, como foi toda a experiência até ao presente

R: Bem, quando eu respondi ao anúncio, deram-me uma morada de uma casa para ir ter. Lembro-me desse momento como se fosse hoje. Estava a tremer quando carreguei no botão da campainha. Atendeu-me uma senhora muito simpática, convidou-me a entrar. Gostei do sítio, a senhora explicou-me como tudo se passava. Iriamos receber clientes todos os dias e como deveríamos proceder. Deveríamos deixá-los à vontade, explorar os desejos dos mesmos e para que eles no final quisessem voltar. Tudo foi explicado ao pormenor, desde o tempo que os clientes ficariam, onde estava a roupa lavada, as toalhas. Fui depois apresentada às outras meninas. Algumas eram mais simpáticas que outras, mas acabei por fazendo amizade com quase todas. No final, a senhora explicou-me como seriam os valores e qual a parte que dava à casa. Não era difícil, entendi logo como as coisas funcionavam. Gostei do ambiente, senti-me segura, isso foi muito importante. Estive lá alguns anos a trabalhar…

Q: Mas e a parte psicológica e emocional? Como foi lidares com tudo?

R: Não é fácil. Foi mais difícil começar, mas ainda hoje não é fácil. Na altura que comecei os nervos eram maiores, a pressão para gostarem de mim. Ver o cliente chegar e não saber como ele é, se é simpática, se é mais frio, que tipo de fantasias tem, o que quer. É preciso saber ter algum sangue frio mas também estar relaxada para desfrutar dos momentos. Acho que o nosso melhor amigo é o tempo mas também ter paciência

Q: Gostas do que fazes? Se soubesses o que sabes hoje, terias feito algo diferente?

R: Eu gosto do que faço. Claro que tem dias bons, muitos bons e menos bons. Mas tento ser positiva e sorrir sempre para o que a vida me dá. Tendo as condições que tinha, não me arrependo de nada. Fiz o melhor que pude por mim, mas pela minha família, pelos meus filhos. Claro que sei que corri e corro um grande risco, mas valeu a pena por tudo o que consegui. Sei que se não tivesse sido despedida, talvez não tivesse seguido este caminho, e estar onde estou a falar contigo, mas aconteceu assim… Mas claro que não vou mentir que este não é o meu trabalho de sonho. E sei que de muitas meninas também não o é. Eu gostaria de ter seguido a área que estudei, terapias holísticas. Quem sabe se no futuro não o conseguirei?

Q: Sim, quem sabe Maria, nunca é tarde para lutar pelos sonhos. Mas diz-me, como encaras o que fazes? Como o descreves?

R: Quase todo o mundo chama de prostituição, que vendemos o corpo. Mas eu não o vejo assim…Respeito, mas primeiro não gosto muito da palavra prostituição, prostituta. No Brasil chamamos garota de programa. Eu para mim sou uma acompanhante, não de luxo, mas uma acompanhante. Presto um serviço, dedicando-me inteiramente ao meu cliente e faço o melhor que posso. Vender o corpo, todos o vendemos, um trabalhador na fábrica também vende o seu corpo. Eu presto um serviço em que durante o tempo que o meu cliente quiser, estarei com ele para que ele desfrute ao máximo. Ele me procurou por alguma razão, porque está necessitado. É muito importante gostar de sexo e conhecer o nosso corpo para fazer o que faço e também ter a mente aberta para explorar muitas coisas. Eu acho que, no fundo, naquele momento somos amigas, amantes, psicólogas, e tudo o que a mente alcançar…

Q: Que tipo de clientes recebes? Já tiveste pedidos muito invulgares?

R: Bem, um pouco de tudo. Homens de negócios, meninos novinhos a querer-se iniciar na vida sexual, velhinhos a querer mostrar a sua virilidade, mulheres. Sim é verdade, também mulheres nos procuram. Normalmente são pessoas divorciadas, solteiras, viúvas, mas também há muitos casados. Pedidos invulgares há sempre. Mas já me aconteceu pessoas quererem só estar deitadas, nus e falar. Já vieram padres também. Acho que o pedido mais invulgar foi para lamber sapatos…

Q: E podes dar uma ideia dos valores que são praticados?

R: Bem, há muita oferta diferente. Eu comecei por cobrar 30 por meia hora e 60 por uma hora quando comecei. Agora estou trabalhando sozinha e cobro 50 por meia hora e 80 por uma hora. Depois há preços variados se o cliente quiser deslocação, mas isso faço raramente, só se o conhecer bem. Sei que há meninas, acompanhantes de luxo que ganham mais de dez mil euros por mês, chegando a cobrar mais de duzentos euros por saída e mais de quinhentos euros por noite.

Q: Conheces o que a lei diz sobre a prostituição? Se sim, concordas e qual a tua opinião?

R: Sei que é legal o que faço, mas sei que as senhoras de casas como as que tive não é legal de momento. A minha profissão é um serviço que não é recente, tem muitos anos. Penso que não faz sentido uma coisa ser legal e outra não porque se uma menina for passar um tempo na minha casa e estivermos as duas com clientes já é considerado crime. Aconteça o que acontecer, sei que o que faço faz muito bem a muita gente. O sexo é muito mais importante do que o que muitas pessoas pensam. E infelizmente há demasiada gente que não tem outra possibilidade de satisfazer as suas necessidades sexuais e afetivas que não seja desta forma.

Não se deveria acabar com isto, mas talvez criar mais leis para proteger-nos. Sentirmo-nos seguras é muito importante. Sei de meninas que passaram mal porque tinha homens que mandavam nelas e lhes tratavam mal, isso sou contra.

Histórias semelhantes à da Maria provavelmente deverá haver muitas. Não devemos negar que existem Marias, mas sim protegê-las.

Autor: António Lopez

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

ÂNSIA CRÓNICA | A inocência

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É notícia nos jornais:

MORREU A INOCÊNCIA DO MUNDO

Está extinta, acabou, morreu solteira, depois de muitos anos fugida pelas ruas da amargura. Tornou-se indigesta e, como tal, não foi difícil de eliminar. Todos o pediam, todos o cantavam e Ela, sem escolha, fez-lhes a vontade. Ficou o Pudor, o seu primo afastado, ruim e inchado de falsidade, sempre acompanhado pela madrasta Decência e do padrasto Decoro. Todos eles com um perfume a naftalina e bem vestidos de hipocrisia.

O céu está cinzento, hoje. Talvez ainda haja alguma inocência escondida por aí, numa criança, enquanto não cresce. Tenho esperança de encontrá-la, porque a inocência que me resta contorce as minhas entranhas, solitária e dolorosa e eu não quero deixá-la fugir. 

Autor: Santiago Ribeiro

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

ÂNSIA CRÓNICA | Português de café + rascunho de um suicídio + rascunho de noite

Português de Café

Ó Português! Quem és tu afinal quando, cansado da lida natural de viver (o trabalho vital, a vida laboral) te sentas naquela mesmíssima cadeira, apoias rudemente os cotovelos naquela tão mesma mesa e entregas toda a tua mente à solidão do silêncio, no café barrulhento, bafiento (entre outros “-entos”) da esquina?

Ó Português! Que importa se és do Douro, da Beira, do Interior ou do Gerês? Que importa se vens daquele Norte formigueiro ou daquele Sul cigarreiro? És um português num café. Por isso, és tão somente, no momento e para sempre, um português de café.

 «– Sai um café!», ou uma bica, ou um cafezinho, ou um cimbalino ou que for…tanto faz. Ai, e faz tanto…

Suspira, ó português. Tira o teu chapéu, ou boina, ou boné, e sacode-me esse suor da testa. «– Atesta!» Se é bagaço com o cimbalino, atesta!

E bebes um, depois outro. Limpas a boca com as costas da mão que as maneiras europeias tu não nas conheces, contentas-te tu só por não te doerem tanto essas costas como as que carregas atrás do coração, um pouco à esquerda. Se não souberes onde elas ficam, essas que te doem, devido ao trabalho do qual (quase) fazes vida, mas, (a)note-se, só porque dele, ela (e tu, meu bom paspalho!) dependem, não tem mal. Acabarás por encontrar o caminho. Perguntar é que não!

Ó Português! Esse orgulho de fidalgo burguês, em bolso de pobre pedinte! Quem és tu no final, afinal?

Isso… Isso é que é… Sabes lá tu, não é? Ó Português!

Esse coração de granito não é forte o suficiente para encarar aquele chamar impertinente do mar pela gente e resistir. Entregas-te a ti, e ao ser, e à alma, e vais.

Para onde, Português?

Ó Português, para onde o teu Deus quiser, para o desconhecido, qual bandido; e, no final, ris-te, rodeado de ninfas, do Adamastor choramingas, sob o pó e a canela das Índias, ao sol daquela Ilha dos Amores.

Ai amores, Português! O que eles te fazem ao pobre coração latino, que late, bate, ó Português, que desatino! Olhas a puta da vida, na esquina, perna nua alçada, salto alto na calçada, na vida. E o teu coração dispara. E apertas o bolso vazio. Fica para outra vez, Português! Valham-te agora, ao menos, os olhos que Deus te deu e deixa o sangue correr e a saliva, na boca, aparecer.

Sabor a salina, a mar…

«– Venha uma loira!», a da esquina, bem ia, mas esta é mais barata!

Ó Português! Mergulhas já o teu ser no mar, no amor e no álcool bento, que é esse o Fado, e o teu Fado é desse. «– Canta, Fadista!» Como ela canta… Como tu fechas os olhos para ouvir a Saudade, o som do repique das ondas e o chamar de um coração lusitano, e todo o teu ser de granito se envolve em si mesmo na sua firme fragilidade ocidental, acidental. E a tua boca fecha para fazer tudo descer ao longo da chaminé do ser, tudo embebido no teu último gole da noite.

Encher-te-á, agora, o fumo do cigarro que tiras do bolso e acendes com um fósforo.

Olhas em redor e, ó Português, só vês espelhos. E tens a sorte de não ser dia de futebol! Ó Português! Nem tu, nem o Café, nem os espelhos resistem à bola roliça no campo ao som dos gritos de cortiça que nunca passarão das redondezas da esquina. Futebol e Fado, triste Fado, digo-te, Português! Tu que vives apoiado nesses teus belos vícios fáceis… E é tão fácil levar-te! E tão difícil convencer-te! Não te entendo, ó Português! Acho que nem tu te entendes. «– No tempo de Salazar é que era!» Não havia gatunos como agora… Era tudo gente séria, graças a Deus!... A Deus, à Pátria e à Família!

A família está em casa…

A Deus tiras o chapéu a cada Trindade que (re)ssoa…

A Pátria… Sabes lá onde está! A última vez que a viste estava na Guiné a sangrar. « –Filho da puta, Salazar!» Grande ladrão… Pim!

Ó Português! E agora? O fio condutor da coerência que te seduz é o que tu usas para te enforcares! Quem és tu, que não gostas que mandem em ti, mas que em ti não sabes mandar?

Ó Português, raios partam! Pim! Pim, Heia!, exortariam os grandes. Mão na algibeira, recostado na cadeira, poesia no sangue, sombra da musa no colo, olho na puta, orgulho firme.

O Café fecha tarde. Tu, ó Português, nunca fechas, findas ou acabas. Continuas forte, altivo, constante, que a vida é pesada, a alma carregada, e esta prosa, boa ou má, findada!

Julho de 2017

Foto de Bannon Morrissy .png

/rascunho de noite/

Cai o pano. Termina a peça. Os atores abandonam o palco.

A noite cai. E dói. Talvez porque cai, ou tão só porque corrói. Corrói porque enche de vazio o que vácuo é já.

E eles escrevem sobre a noite, de dia, achando-a clara. Querem vê-la, lavá-la de seu breu, despi-la das fúnebres vestes. Não é amículo, é derradeira pele, verdadeira na sua mentira negra, esta que se faz clara aos olhos que a querem ver. Não veem. Nem eu, que a ela regresso sempre, a vejo. Porque cada perceção é nocicepção mera. 

O teatro fecha, termina a peça. Acho que finda também a vida. Infinitas vezes a vi findar. Outras tantas vim aqui parar, ao jugo da noite. Subjugada pelo seu encanto de ponte entre a vi(n)da que finda e a que a contém, a que anseia por findar a cada noite destas. Os que me viram no eu não sou, saem, repletos de si, dizem que são ora mais, porque beberam de mim o que eu não tive, tenho ou terei alguma vez. Comentam. Comentam-me. Comem e mentem. Comem-me e mentem-me. Justa cadeia circular, que eu menti-lhes primeiro, vendi-lhes um ser que não era e, nua, cedi-lhes o cetim de um prazer que não tinha. Caleidoscópio noturno prende o ser soturno que em mim habita. Os círculos sucedem-se (“Por favor, sosseguem!”) numa rosácea interminável, que mina a cada mentira, a cada peça que finda, a cada pano que cai.

Porque quando o pano cai, caio eu.

Apaga-se a luz, põe-se o sol. Cai a noite e eu caio nela, com ela. Caímos na cama de si mesma, aconchegamo-nos ao seu lençol celeste, bordado de estrelas e histórias, que nem lençol é, que é pu(lc)ra quimera. Cobertos de breu e de brilho. Cintilam os nossos olhos, postos nos nossos sonhos mortos, poisados connosco neste esquife em que descansamos, berço funesto.

Embriagados espíritos noturnos cobrem as esquinas que dobro. Almas seguras escorregam de corpos que se seguram num só pé. Mas não porque são bailarinas de porcelana em ricas caixas de música. Estes pés têm calos e não se aguentam senão na ponta do abismo que é a feira ambulante em que vendem. Os corpos. Em que se vendem.

As almas escorregam, misturam-se na calçada, dissolvem-se na chuva calada. E nas lágrimas dos que deambulam ainda. Que esta é a hora das odes aos males do mundo. Esta é a hora dos fartos dos fados. Que fardos! E como escapar? Como fugir se numa taberna aberta se ouvem cantar saudades?

O som evapora, dança no ar. No chão dançam baratas e ratos. Dançam vermes também, vermes da vida, germes pensantes. Esses nem pensam. Bebem só este ar frio que é o assobio da irmã da morte. Este ar. (D)a noite. Açoite: este ar respira-se como um açoite. E doí. A noite dói. Talvez porque cai.

E caiu.

Agosto de 2018


/rascunho de um suicídio/

(os atores aprontam-se para o último ato. Uma sala, decorada apenas com um piano e respetivo banco. O dia está já ‘in media res’.) 

Um ângulo reto, entre a parede e o teto. Um perfeito ângulo, severo da sua perfeição. Belo. Branco. Vazio, como a vida como que vazia dela. Vazio, como o revólver que dia de um ramo dela. Daquela árvore cujos únicos frutos tinham secado antes da colheita. Sobrou um, bonito, macio. Rosado. Condenado, num futuro mal-amado.

Era Verão. A janela não mentia quando, cúmplice inerte, vigiava o calor da rua deserta no frio da sala erma. Ou seria o contrário? Do crime, era igualmente culpada: um pedaço de sol, uma mancha de luz, derramada sobre o chão nu da sala, no suporte despido da alma descalça. Daquela árvore.

Era Verão. Mas no ar o hino era o da Primavera. Vivaldi abraçava o ar gelado do espaço que se erguia a indecisão caótica do vazio entre as seis paredes da sala. E eram pés, os que calcavam o chão. Da sala. Eram raízes, as que não conseguiam sustentar o peso da alma que sobre elas se erguia, em ruínas. Na sala. Que raízes, se não são capazes de sustento?

Piano saía o som do piano. Estava sentado à sua frente um pequeno pêssego. Rosado. Macia criatura, tocava as teclas, as notas, os seres. Que seres? Na sala, que seres? Havia um fruto, meramente rebento, ainda ornado das flores virginais que são a cegueira encantada da inocência infantil. Toca, toca, querubim. Que as aves do “c(/C)éu” seguem teu compasso. E as árvores da Terra… Aquela árvore, em ruínas na sala, estava morta, envelhecida pelo vento que a fustigou. O vento inconstante castigador das almas, que num ato de criação divina lhes são condenadas. O vento, como no inferno. E a vida.

Era Verão. O ar iniciou-se, inexoravelmente, na mentira. Os pés aqueciam, morbidamente enregelados. Era o sol, que caminhava no seu arrefecimento para poente. Os pés da árvore morta, o sustento da alma findada, finada: o esqueleto, a máscara que os culpados, tal bonecos num teatro, envergam. Culpados do crime de nascer humanos. Demasiado humanos. Humanos demais para viver a desumanização da vida, entregam-se à existência carnal, que a carne é parasita sádica da árvore sob ela perecida. Tão pouco parecida. Já não poisam nela os pássaros e já não dormem lá as gentes. Agentes fatais da vida da árvore, repoisam agora entre o adubo da terra. Desterrada de si. Era isso. É. Isso. Que se é. Que ela era. 

Tic. Tac. Tic… Dois relógios marcavam o compasso. Do piano. Da música. Da vida, toda ela musical, tragédia grega, ou funeral. E a sala, lá estava, nua. E nem tinha uma porta. Como se entra numa sala sem porta? E como se sai? A luz alaranjada revelava um piano, tocado pelo um fruto intocado da árvore. Rosado. Todo menina, de rosa vestida, de vestido. E uma mulher. Ela. Morta. Ou talvez apenas demasiado viva, por fora, para suster a podridão convulsa, por dentro. Vestida também de vestido, alvo, como o Céu (onde dormem os pecadores) estava ela, nua. Como a sala. Como a rua. Segurava na mão esquerda um revólver. Era o do avô. A vida passara por ela, para aquela cujo toque alado a arma lhe prometia. O seu olhar era gelado, como o era o seu coração, que bombeava uma força que não era já de vida. Bombeava a tortura de mais um dia, uma hora, um segundo; até que cada inspiração de tornou uma prisão. Três balas rolaram para o revólver. 

 - Um revólver, pensava, era a arma perfeita. Rodava, desenhava círculos sobre si mesmo. Círculos. Tão perfeitos. Tão dilacerantes quando vividos. «Porque não se fazem algemas quadradas?» Os círculos e a sua completude… O que começou, será acabado. O revólver rolou do ramo esquerdo para o direito.

Rodou. O revólver. E a saia do seu vestido, numa valsa outonal, fatal (que bem poderia ser fetal). Uma senhora a acompanhava, malévola na sua obscura bondade, e era de ébano a sua presença, leve. «Leve-me. Senhora de negro que ceifas os campos da Terra, vinde.» Premiu o gatilho. E beijou-a, num beijo pestilento de prazer pacífico.

Um relógio parou: 18:04. E choveram pétalas rubras, que pintaram as paredes de vida, de sangue, que é a tinta com que a senhora de negro pinta os corrompidos lábios seus. Aqueles que são os autores (serão artistas?) do cínico final. Nas veias do arcaboiço caído, a paz substitui o sangue, que o adubo da terra é mais venturoso que os homens. E a Humanidade é tão grandiosamente restolho como os cadáveres que decoram os cemitérios, para sacrilégio da vida, cativeiro dos mortos, e masturbação dos vivos. 

Era Verão. Mas o frio das suas mãos em breve anunciariam o Inverno que começara afazer-se ouvir, no ar ermo. Como a sala. Como alma. E o crânio. Dela. E a outra? Bela flor, doce fruto não parou nunca de tocar, e tocaria até ao fim, que é ilusão, embora os seus dedos infantis roçassem por vezes as escarlates pétalas, que por sobre as teclas repousaram. Não deitou nenhuma lágrima. A sua respiração manteve-se sempre constante, firme, embora inspirasse agora um odor imundo, do mundo. A árvore estava morta. A máscara, o esqueleto, morrera agora também. Restava-lhe o restolho e o silêncio, quando, como a vida de quem lhe tinha a vida dado, terminou a peça e o piano parou. Finda-se o ano. A última estação chega ao seu final, que é, talvez, o seu começo.

Tac… Parou o outro relógio: 18:12.

Leve, tal anjo, a criança levantou-se do seu banco. A sala, como a vida, não tinha porta de saída. A saída, como a entrada, era cara. Na sua ridicularia petiza, pensou que talvez a pedisse a para o próximo Natal. Afinal, portava-se sempre tão bem. E deitou-se. Deitou-se no chão, com a cabeça pousada no cadavérico regaço da mãe, cobriu-se de uma réstia de sol e de sangue e deixou-se embalar pelo cantar maternal da dona de negro, abraçada à perfeição do revólver. E do fim.

(cai o pano) 

Autor: Ana Fagundes -1°ano

           Ilustração: Felipe Bezerra - 3°ano

POETAS DE ESTETO NA MÃO - Simbiose e Assobios

O reflexo de ti 

Que me reflete 

Faz-me não querer nunca 

Deixar de ser teu 

Espelho. 

Porque nos teus gestos 

Vejo toques meus; 

Nas tuas falas 

Escuto minhas palavras; 

Nos teus olhos 

Refletem os meus. 

Serei eu tu 

Serás tu eu 

Nesta simbiose, 

Às vezes perfeita, 

Perco-me em mim 

E descubro-me em ti. 

No teu corpo 

Procuro o que de mim fugiu 

Na esperança inquieta 

De nunca daí sair. 

O templo que não é meu 

Mas onde também estou 

Eu

Foto de David Clode.png

Suspiraste

Como já o fazias

Naqueles dias

A chuva caía lá fora

E ficavas presa

Até que ela fosse embora

Lá ao longe, no campo

Sorrias e cantavas

E quando eu te chamava, assobiavas

Guardo em mim essa sonância,

E ainda hoje

Relembro os bons tempos de infância

Às vezes ainda te chamo

Sento-me e aguardo

Na esperança néscia

Que o teu assobio chegue ao meu lado

Ele não chega

Tu não vens

Mas o meu coração deténs

Suspiraste

Sem eu te dizer adeus

Fugiste

Com esses assobios que eram meus

Texto: João Valente - 5º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano

ÂNSIA CRÓNICA | Hoje vou morrer

Foto de Marcos Paulo Prado.png

Hoje vou morrer. Pelo menos era o que dizia a carta violeta, há uma semana atrás, assinada por ela, que ia morrer dali passados oito dias (se bem que isso significaria que morreria amanhã, mas tenho aprendido que a morte não tem boas relações com a Matemática).

Na realidade, talvez até já tenha morrido, durante o sono, de madrugada, e esteja já a experienciar o que quer que seja que há depois de morrer. Ou então estou a desperdiçar o meu último dia a pensar sobre isso.

Como será que vou morrer? Se ficar em casa, será que simplesmente bato com a cabeça ou dá-me um enfarte? Se sair, tropeço nas escadas, passa-me um carro por cima, ou sou apanhado de surpresa no meio de um tiroteio clandestino numa rua duvidosa? Talvez morra em frente ao meu querido caderno, no meu querido café, a meio de uma frase importante, para que depois leiam (quando morrer, o que escrevi vai ser muito mais interessante) e fiquem com a frustração de pensar o que seria que eu ia escrever, quais seriam as minhas últimas palavras, não tivesse vindo a senhora feita de ossos levar-me com ela. 

As últimas palavras de uma pessoa são, na realidade, algo bastante irrelevante. Se todos pudéssemos escolher as nossas, estaríamos repletos de clichês baratos e facilmente replicáveis. A mágica é precisamente não saber quais elas serão, se uma despedida, se uma anedota, se uma preposição sem seguimento, se uma pergunta sem resposta… as mais memoráveis são as que não nos lembramos bem, que provavelmente terão sido simplesmente “Até amanhã, netinha”, ou uma história a contar, uma refeição a planear, que ficou a meio. Mas não é assim que faz sentido? Como uma vez li, morre-se a meio de uma frase, morre-se a meio da vida, morre-se e pronto.

Portanto, hoje vou morrer. Não contei a ninguém, porque não achei necessário ter de planear despedidas e palavras que fiquem bem dizer, se bem que compreendo que daqui por uns anos se torne banal saber-se com certeza que o nosso amigo vai morrer (hoje também temos essa certeza, mas a incerteza do quando atenua-a). Deixo que seja o meu segredo com o carteiro.

Decido não sair de casa e nem me levantar da cadeira. Ao menos vou confortável. Ao menos deixo-lhes umas

Texto: Raquel Moreira - 3º ano

Ilustração: Felipe Bezerra - 3º ano